segunda-feira, agosto 25

Rendez-Vous

«...que interessa aquilo que temos para dizer, se o mundo é surdo...» continuava eu, enfadado, num desenfreado corrupio de lugares-comuns. Era noite e estava uma agradável aragem que disseminava o pestilento aroma da urbe, contudo, insuficiente para despentear cabelos e fazer com que saias de finos tecidos subissem deslizantemente por pernas perfeitamente depiladas. Pessoas passavam em rebanho, como se caminhassem calmamente, sem qualquer tipo de rumo definido, o que era uma ilusão, uma distorção causada pelos modernismos que adulteram a percepção que seres enfastidiados e improdutivos têm do rebanho que permite tudo, permite o crime, o amor, a fertilidade, a luta, as letras realmente úteis e não banalidades estilizadas e presunçosas.
Continuava a debitar palavras que sofrivelmente formavam débeis frases que quase me embaraçavam mesmo eu não me importado com nada; sentia-me tão incapaz, tão aborrecido. Tentava, por pura vaidade, redimir-me e mostrar a minha fibra diletante, chamava a mim aquela tão habitual e normativa retórica aparentemente profunda, mas, ela não surgia, continuava completamente encarcerada no fundo do meu estômago, ou talvez, no cólon, não sei...
... então, ali estava eu, o verdadeiro eu, sem qualquer foco de inspiração pedante para disfarçar a mediocridade. Olho para a lua, para o enorme quarto minguante que ali surge, no cimo de edifícios que circundam a vasta praça com um monumento ao meio; olho e demoro-me o mais que posso, quero ficar por lá, não ter de voltar a encarar a minha mediocridade; cai-me uma lágrima, sim, penso que sim...
- Estás a sentir-te bem?
- Não, talvez não...
- Queres ir embora?
- Sim, vou andando.
- Gostei muito de ti - diz-me sorrindo - és muito interessante, espero voltar a ver-te, um dia, uma noite.
- Verás.
- Até breve, estranho...

sábado, agosto 23

Mensagem Silenciosa (II)

quarta-feira, agosto 20

Jacques Chirac à Jerusalem

é curioso como, estando na cama, ela reconhece o vizinho pelo barulho que ele faz a descer as escadas do outro lado da parede; mas não lhe sabe nem o nome.

Os Nomes

"Hardeman mandou vir outra bebida. Descreveu a casa que tinha alugada em Mayfair. Falava lenta mas muito claramente, e as suas frases começavam a apresentar uma correcção complicada e contrafeita, um entrançado de orações, gramática pura e essencial. Embriagado. "

terça-feira, agosto 19

O que é feito da expressão "O tempo está bom, hã?"

- Não está a ver quem sou eu?

- Não… Peço desculpa… Mas, realmente…

- Sou a Adosinda, lá da rua. A senhora não me deve ‘tar a conhecer.

- Ah, sim, já estou a ver. Bem me parecia que não me era estranha. Bom dia!

- ‘Tá a ver ist’e? Fui eu, que caí.

- Ah, que aborrecimento.

- Pois, é é. Já fui ao médic’ e ele não sabe o que é. Volta e meia desmaio-me, e depois olha, dá nisto. Esta última vez foram 5 dentes. Da outra foram só quatro. E já não voltam a crescer.

- Pois… Realmente, é uma chatice…

- Ainda por cima, a minha mais nova, não sei s’a senhora conhece, a minha Maria do Rosário, que dei-lhe este nome por causa da ‘nha mãe, que eu gostava muito, mas morreu-me cedo… Tinha eu 22, tinha acabado de casar. O meu marido foi trabalhar para a Alemanha, disse que me mandava dinheiro para eu ir para lá também, trabalhar para as limpezas, mas até hoije, nem truz nem muz…

- Pois… Este 28 que nunca mais chega…

- O que é que eu ‘tav’á dizer? Ah, a minha mai’ nova, a Maria do Rosário, agora deu para se meter a trabalhar a vender gelad’s na praia, já viu isto? Eu já lhe disse… “Maria do Rosário, eu não andei a pagar o curso profissional de cabeleireira para tu agora me andares a vender gelados a camónes…” E ela só me diz que é para o verão, até arranjar um emprego… Mas nunca mais. E ela ‘tá magra como uma cadela depois do cio. Aquilo emagrece a olhos vistos. E eu, ando para aqui preocupada, que já lhe disse “Maria da Conceição, tu vê lá a tua saúde, tu não andas bem. Vai à médica da junta, que ela vê-te num instantinho”, mas ela não quer ir, e diz que ‘tá bem, e que é só cansaço de ir ao centro de emprego e vender os gelad’s…

- Já estamos aqui há uma hora e o 28 não vem… E a chuva não tarda cai…

- Que parvoeira a minha, eu disse Maria da Conceição… Essa é a minha irmã que está no hospital… Vou lá agora vê-la. Uma trombose, coitadinha… Lembrei-me da minha mãe… Que me morreu nos braços, não sei se lhe disse… A minha irmã foi a mesma coisa… Pensei que se ia ficar ali… ‘Tá a ver aquela esquina? Foi lá!

- Olhe, vem aí o 28! Então boa tarde!

- Adeusinho, passe bem!... Mal criada, nem me mandou as melhoras… Quando a vir na rua, nem lhe digo nada…

(…)

- Olá, boa tarde! Como está?

- Boa tarde…

- Sou a Adosinda, sou lá da rua! Vivo ao pé da mercearia do Ti' J'aquim!

- Ah sim! Como está?

- Olhe, eu cá vou indo… Isto temos cá um país… Então não é que só tenho consulta do médico dos nervos em Janeiro? Deve ir p’á França, de férias, no natal. Deve ser isse. Ainda hoje são 11. Veja lá bem isto…

- O 28 está cada vez pior…

-Pois.. Sabe que a minha mais nova está nas drogas? Aquela gaiata enganou-me bem enganada…

- 1… 2… 3… 4… 5… 6…

- E a minha irmã morreu-se-me nos braços, naquela esquina… Coitadita… Pobre coitada que a vida só lhe trouxe desgraça…

- TAXI!!!

domingo, agosto 17

Shine a Light - Dark Light

Tarde de domingo, estou praticamente catatónico a ver tourada ao som de spiritualized; não mudo de canal por uma espécie de bloqueio mental e tenho um pé em cima da mesa da sala; olho para aquele muito pausado e colorido corrupio que a televisão me mostra por entre planos em que tipas loiras e crianças aparentemente saudáveis são filmadas directamente das bancadas. Aquelas indumentárias garridas que os tipos usam; os animais com grande porte e de uma beleza que sei que só agora comecei a apreciar, cheios de sangue e de uma fúria contida por anos de condicionamento. Deliro, sinto o sangue a fazer-me renascer, a turgescer-me parte a parte, acordo e sorrio - devo ter os olhos a brilhar e inclino as costas de forma a ficar com a cabeça mais perto do ecrã. Ninguém pára o animal, aquele grupo de forcados presunçosos e arrogantes, que por dentro tremem e sentem, sentem muito aquela adrenalina merdosa que confundem com o sentimento genuíno, com o verdadeiro viver; lá estão eles, fétidos, fedem a vicariante, a mefítica necessidade de afirmação. Pulo, guincho, o touro destrói tudo, ninguém o detém, sinto-me genuinamente feliz, alegre, não me lembrava de me sentir assim e nunca mais assim me voltei a sentir. Se ele não tivesse os cornos serrados… Segunda tentativa, mas ninguém doma a besta, desta vez ficaram dois à frente para a pega, mas volta-lhes a correr mal e, adoro aquele animal, tão gracioso, adoro-te mesmo, minha besta negra. Acabo por perder a paciência e mudar de canal, assim, evito ver a besta que certamente, acabaria dominada e mais tarde, morta, acabada, arruinada… mas se algum dia para além de mim, alguém me ler, lembre-se da besta negra que apesar de alucinado, drogado por estímulos confusionais, levou tudo à frente e lutou contra o burlesco e macabro destino que lhe foi afiançado.

9.69

Como será… ver alguém de quem gostamos mesmo muito, se é que é possível gostar mesmo muito de alguém, subitamente decapitado? Que será que sente a senhora de cinquenta anos que vê o seu marido das mesmas idades, decapitado por um acidente de trabalho no quintal, quando estava, com a perícia do costume, a arranjar uma alfaia agrícola? Como se sente o tipo que teve um acidente de automóvel, olha para o lado e vê apenas o corpo da namorada que tem umas mamas celestiais? Que será que sente uma mãe que olha para o seu literalmente acéfalo bebé que havia nascido perfeitinho, com olhos verdes e que havia sido motivo de grandiosas graças? Dou por mim a pensar nisso, dou por mim a tentar perceber o que são os sentimentos, como sentimos, como reagimos ao de mais intenso, ao extremo; tento imaginar a situação, faço muita força, quase que entro num transe espiritual, mas não, fico completamente inerte, não sinto coisa alguma.

quarta-feira, agosto 13

CANIJA

Pá... muito se tem falado daquela treta do polícia encolerizado que disparou contra a a Ford Transit branca (viatura abençoada por esmegma e destinada aos homens fumados, aposto que cheia de cortinas e aquele cheiro peculiar a homem ciagano) e casualmente acertou com um projéctil no cheio de futuro e potencialmente brioso, Canija. As pessoas criticam os familiares, porque foram gamar umas merdas e levavam com eles um puto de 13 anos - provavelmente o puto até era desenvolto no terreno e cabia em sítios que os mais velhos, alargados pelo tempo e pela cultura, não acessavam. Caralho para essas gentes sedentárias, moles, enfadonhas, que não fazem 5 flexões nem dão mais que uma foda por semana, chalados do caralho, agarrados ao seu padrão social. Eu condeno-vos por levarem convosco as vossas fartas crianças para o fórum montijo e lhes darem mcdonalds para o bucho, engordando o rabo da vossa descendência que vai atiçar a líbido do pederasta que mora no prédio ao lado, abomino esse vosso ritual de confraternização com o produto da vossa condenável fertilidade. O Canija era cigano, cigano pá! Para os ciganos, esses filhos da puta fodidos e ardilosos de forma nada subtil, é normal levar um adolescente ou até uma criança quando se vão cometer esses actos que a sociedade considera como delitos, foda-se, para eles roubar umas merdas, umas rebarbadoras, uns trocos, é uma coisa do quotidiano, ritualista, que une várias gerações da comunidade, faz os jovens sentirem-se importantes, pertença. Para vocês, super protectores, que condenam esse acto, que deixam os vossos filhos ver televisão de merda e bater punhetas a ver aquelas putas boas, de mamas para cima, dos morangos com açucar; que levam as crianças com 13 anos a beber um copo para se sentirem mais adultos, que os tornam efeminados com os mimos ridículos e esquizóides com as vossas discussões conjugais, pó caralho pá.
Felizmente, quando imberbe, tive a felicidade andar por aí, no crepúsculo, em trilhos esburacados e cruzados por lebres e predadores indiferenciados, com os meus tios e o meu avô, numa Bedford, a roubar maquinaria e cobre nos empreendimentos desses latifundiários do betão que enriquecem à custa da exploração do indigente alheio e sim, sou mais feliz por isso, não precisei que o meu pai me comprasse uma playstation ou me falasse de mamas e copos.
Só um aparte, o polícia disparou com uma Walter, arma com mais de 50 anos que eu conheço bastante bem. FODA-SE, COMO É POSSÍVEL DISPARAR UMA ARMA DAQUELAS PARA UM ALVO EM MOVIMENTO!!!

Beijing, ou a Arte de Destruir Sonhos

Estou completamente do lado dos organizadores da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim (ou Beijing, como Alguns portugueses passaram a dizer, só porque aparece nas emissões televisivas). Mudaram a miúda que cantou só porque o seu rosto arredondado e a sua dentição não passavam a imagem de perfeição que seria necessária numa cerimónia como esta, num evento como este. Ok, é certo que não é justo para o rouxinol feio. Mas, meus caros, eu não quereria ver uma valquíria a fazer um flik (ou flip, nunca sei… os fonemas são perecidos) como um dos hipopótamos dançarinos da Fantasia da Disney (esta referência foi muito gay…).

Este assunto é-me particularmente familiar. Há uns tempos, quando comecei a conhecer uma banda que andei a negligenciar alguns anos, os Anathema, fiquei viciado numa música chamada “A Natural Disaster”, interpretada por uma voz feminina quase perfeita. A fluência com que as notas expiradas por aquela boca atingia uma quase perfeição. Posso confessar que, por momentos, me apaixonei pela voz. No entanto, fui apresentado virtualmente (por intermédio do youtube) à dona da voz, pelo meu caríssimo amigo Chigurh (filho da puta que me estragou a imagem perfeita associada à voz!!!). Bem, fiquem de seguida com o vídeo que me destruiu uma imagem quase perfeita. Proponho que, para terem a mesma desilusão que eu vivi, ouçam primeiro a música, sem verem o vídeo. Depois sim, vejam o vídeo.

terça-feira, agosto 12

fado, os blues portuguese

estava um velhinho meio bronzeado pelo sol de cidade, boné esfiapado,  emparelhando cartão nas traseiras de uma loja da baixa. Tinha um relógio que, para ser lido, precisava de uma certa torção no pulso. Um pouco mais longe vinha uma camioneta do lixo que, a estas confusas horas da tarde (eram quatro e tal) vem recolher o papel dos restaurantes e assim. Confusão garantida, claro, ainda para mais que abriu uma nova empresa de aluguer de carrinhos amarelos. Uma patetice para turista que só fode o estacionamento aqui na zona. Dizem ou pensam todos isto, vê-se nas sobrancelhas franzidas. Eu gosto de lhes chamar peste amarela, é a peste amarela, digo eu para a minha mãe à laia de alternativa que me impede de ir lá aos berros dizer que isto não pode ser assim, etc. 
De qualquer forma, havia ali uma tensão, entre o velhinho que arrecadava cartão para ir vender ao quilo nos lugares que só a gente com mais de sessenta anos conhece, e o camião que lhe vinha recolher papel. Eu passava, estava no meio dos dois, e fazia um vértice entre estas duas cenas. Vou buscar o meu carro, que estava lá para cima, e volto para baixo. Passo pelo velho. Ele olhava desconsolado para o mostrengo verde que desaparecia na curva com a Rua da Conceição. Levaram-lhe o cartão todo.

sexta-feira, agosto 1

O sol nesta noite que ainda parece fim de tarde, desce vagarosamente, incomodando a vista que tenta constatar o horizonte. Um par de pés bem feitos em cima do tablier do meu carro, bem feitos e bronzeados; uma fita no cabelo, alças sob ombros avermelhados… Temos sempre tanto assunto para debater. O pessoal de ar aciganado ciranda pelo caminho que envolve o acesso ao ferry e olha-nos de forma invasiva e agressiva, exibindo seus sorrisos que unificam um estranho cabelo loiro com uma pele demasiado queimada pelo sol. Acho que te metem medo e não tenho a certeza se te sentes, ou não, segura comigo a teu lado.