segunda-feira, fevereiro 23

Mensagem Silenciosa (III)

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domingo, fevereiro 22

Uma noite no Porto

É um vazio que não entendo, um passeio que não chega a acontecer, é a meia-noite daquilo que não sinto. Sigo viciado em momentos que me fazem esquecer a minha existência vulgar, monótona, da mesma intensidade que a actividade sísmica da lua; viciado em momentos que me tornam as palavras leves e os olhares pesados de paixão. Viciado mas imóvel, viciado mas reduzido à incapacidade, manietado pelo conformismo, pelo ar de perdido, pelo adeus à beleza. Foi-se… e cada vez de mais longe, acena-me de forma trocista, como que a seduzir-me, Lolita metafísica, castração química.

O sentimento a bruxulear dentro de mim, a vida a mexer-se, a agitar-se, faz-me cócegas e eu gosto, é bom, é desconfortável e faz com que me sinta mais novo apesar do fardo do encanto. Aqui é onde as coisas acontecem ao ritmo da passada lenta e compassada, onde o vento sopra e depois faz-se um grande silêncio apenas quebrado por uma palavra acertada; silêncio novamente, olhos nos olhos durante cinco segundos, um ar muito preocupado, voltamos à passada.

A realidade é uma guerra onde as últimas batalhas têm sido ganhas pelo vazio, por esse vácuo transparente que fica dentro duma redoma branca, por esse fio de fumo que se perde num oceano; a inspiração vai perdendo, perdendo… o ponto de não retorno é já ali – um dia torno-me vazio e vulgar, sem nada de inopinado, sem o desleixo da inspiração, a desordem do encanto, sem o fascínio da bizarria, das massas perdidas alojadas à beira de uma sarjeta entupida, sem noite nem dia, fico caído a um canto de minha casa ao invés de procurar, deitado num sofá à espera que os dias, iguais a todos os dias, avancem, avancem, como se algo pudesse acontecer ou deixar de acontecer, coisa revolucionária suceder. Um dia não me levanto e a pia será a minha melhor companheira, um dia torno-me irreconhecível para mim mesmo e deixo de me respeitar. Não me lembro do último olhar que cruzei…

As folhas perenes, fartas de ver as caducas a perecer, agitam-se e assistem a esta noite fria de constipação iminente; sinto o odor do teu tabaco que naquele fumo que desenha no ar, traz também um pouco do teu cheiro, pedaços microscópicos da tua pele, células tuas com vestígios dos sentimentos que foste perdendo, tosses com força, uma, duas vezes e o cabelo negro e encaracolado vai-te para as vistas. Banco de jardim isolado com fetos secos a brotarem para cima de nós, ervas daninhas cresceram onde agora temos os pés, encolhemo-nos com frio, o frio que permite justificar os titubeares da voz e olhamos para o céu da cor da cinza do teu cigarro, coberto de nuvens altas, longínquas e indiferentes a tudo, indiferentes a uma noite morta para além deste banco onde qualquer coisa espera ainda por morrer, perto do charco onde toda a fauna se silenciou para presenciar mais um momento de infértil interesse, de sentimentos contidos que geram uma impotente entropia interior.

Oiço um zumbido que está em todo o lado, ocupa todos os espaços físicos e temporais, ocupa tanto que por vezes penso se não estará dentro da minha cabeça, mas não estão todos os sons dentro da nossa cabeça? vai e vem, para aqui, para ali, às vezes parece que se afasta e oiço-o pior, mas regressa rapidamente por um túnel e mais um ciclo completo, nunca o deixo de ouvir – é o grito da urbe, grito medíocre, grito constante e regular, sem grandes oscilações ou vibrações, um grito que vive por viver, vive indiferente ao ter de morrer.

- Quem és tu, porque te sentas à minha beira?

Saem-me com dureza, as palavras. Sai-me tudo cá para fora mas nada mais verbalizo e nem um dedo me atrevo a mexer… a tua barriga, tão perto de mim.

- Sabes bem quem eu sou. – respondes e depois tosses, tosses tanto que eu fixo-te os pés para que não te sintas constrangida.

- Tens frio? – indago, como que para me redimir de qualquer coisa, para me redimir do vazio que cresce ainda mais, para me redimir da vontade de partir a correr e parar apenas desmaiado no chão, morto de fadiga, acho uma boa maneira de morrer, completamente estafado, sem poder mais, deve ser um alívio, uma paz bem-vinda e desejada.

- Não, já estou habituada.

- Gostas de mim?

- Por vinte euros gosto de toda a gente.

E eu gosto tanto do teu sotaque…

terça-feira, fevereiro 17

Les Temps Detruit Tous (III)

Vejam lá se conseguem encontrar as diferenças. Não sei se são muitas. Pelo menos o "menino" Karl Wolf conseguiu destruir um clássico dos anos 80. Não é o primeiro nem há-de ser o último. Foda-se, estas coisas deixam-me mesmo infeliz. Se eu mandasse, teria de ser criado um comité de avaliação de covers, samples, etc., para não se cometerem crimes destes. Provavelmente nem o Karl Wolf nem os regaetonianos anónimos conhecem o tema que deu origem a este lixo musical.

sábado, fevereiro 14

Um dia especial

Já não há pão (a conquista do pão)...
- Dê-me 4 desses.
- Chapatas?
- Sim.
Subitamente, ser abjecto:
- Que dia é hoje?
- 14. - responde-te sem conter os dentes da frente que estão sempre cá fora, como a pila de um cão enlevado pelo cio de criatura da mesma espécie.
Claro que não podias saber. Não é por principio, ideologia, aversão ao capitalismo, idiossincrasia específica, desenvoltura literária, profundidade voluptuo-tenebrosa, que não sabes. É por seres assim, abjecta, cansada de te carregar por entre a exígua padaria, dois passitos para ali, dois para aqui, cansas-te, fartas-te dessa tonelada a mais, desses litros de sebo que te escorrem pelo corpo.

sexta-feira, fevereiro 13

"Não volto a comprar bananas da Colômbia, compram-se ainda verdes e dois dias depois, estão completamente podres."
Não vejo coisa mais verdadeira para se dizer.

A RECTA

Negligenciei-te...
Há sempre algo que me inspira, um último e seguro recurso, porto de abrigo para a minha débil e suplicante por eutanásia, criatividade; independentemente da tipologia do dia, da cor da sua face e espessura da sua linfa, do volume da precipitação, do número de horas de sol ou intensidade das mesmas, ilumina-me... Inspira-me mas eu fico contrafeito, nauseado, é uma inspiração doentia, perniciosa, que se propaga em mim e já me conhece melhor que qualquer outra pessoa ou cousa, incluindo eu próprio - é o meu delicioso tumor, a negritude que embeleza as minhas palavras, as tardes no IPO, o pacto com o diabo que é apenas um tipo como os outros, burocrático e que faz BTT no fim-de-semana.
Já só te tenho a ti... aglomerado de quilómetros, asfalto esburacado por tudo e todos, trespassado por aquele peso que quando eras nova, gostavas de sentir em cima de ti, porque ninguém gosta de tísicos ou de platonismos.
Venho do trabalho e o trânsito acumula-se, pára e arranca, está escuro e, ali, é ao contrário, porque ali a actividade ilícita não sobrevive ao cair da noite, não supera a ausência daquele aterrador brilho do céu -assusta-me tanto que o tenhamos trocado por Deus; os fachos ejaculados pelas cabeças dos carros que amiúde alumiam a tua periferia, não dão a segurança suficiente, a visibilidade ao teu histrionismo -antes fossem, histriónicas... Olho para as bermas que andam lentamente, ao ritmo decidido pela fila e pelo meu pé hediondo no acelerador, uma luz parda parece acumular-se centímetros acima de ti, uma espécie de penumbra luminosa, um nevoeiro de luz, um nevoeiro onde se esconde cada gota de esperma perdida, que agora, fosforescente, é um pirilampo; vejo a vegetação rasa que envolta pelo mefítico ar que ali paira em baixo porque tem vergonha de ascender, pequenos abortos, pequenos rebentos indesejados que ali ficaram, na aridez dos sentimentos, no viço da perversão, ali a noite é dia e o dia é noite, ali é tudo às claras e as porradas quando muito são vespertinas.
Há quem tenha a lua, dizem-se seres lunares, falam com o satélite e pregam-lhe balelas e histórias de amores mal-contados, eu prego-te a ti, minha recta, que brilhas, resplandeces aqui dentro, milhões de pirilampos, urzes que ninguém queria e te enfeitam daquela forma tão ridícula que nos faz rir quando passamos à tua beira... Como poderia ter eu ido para Lisboa e deixar-te, musa, tágide que vieste pelo mar da palha, ninfa dos meus olhos que nada sentes por mim...

quarta-feira, fevereiro 11

desambiguação

afinal de contas escreve-se "foda-se" ou "fodasse"? caralho que confusão.

segunda-feira, fevereiro 9

Estou tão desinspirado... Acreditem, até faço força para obter uma qualquer inspiração - quem se lixa são as hemorróidas. Consigo uma frase ou outra, uma rima por acaso que me desmoraliza, um pensamento menos banal, inúmeras razões para estar assim, infértil, mas, fico pelos preâmbulos de tudo, nada desenvolvo, nada passa para lá daquela vulgaridade decente, muito publicável mas sem a coisa que no fundo procuramos, a coisa que nos prende a nós próprios, a palavras que extraímos do nosso frasco sem rótulo. E não, não acho o livro dela tão mau como vós apregoais, parece-me sincero, igual a ela própria. Limitado, pois claro, mas com as mesmas limitações que a pessoa em causa tem, não são limitações ligadas ao pedantismo, ao diletantismo. Ok, não consegui ler mais que uma página, porque aquela treta irritava-me mesmo, a lamechice vai-me para a laringe e sufoca-me. Mas é honesto, superficial, como as coisas são nos dias de hoje, superficial pintado de profundo, uma superficialidade pretensiosa que confunde o que sentimos, as nossas desilusões, as nossas idiotices e trivialidades, com os problemas do mundo, as dúvidas, o existencialismo.

terça-feira, fevereiro 3

"palitos?só nos dentes" kaya(sic)

"com um jeito do corpo
feito sem dares por isso
fazes mais mal que o demónio
em dias de grande enguiço"
eheh

Memória Fátua

«...és igual a todos os outros, a única diferença é que conheces mais palavras.» Não consigo lembrar-me de quem me disse isto, esforço-me, mas é inútil.
Passo de carro pelas ruas do sítio onde recentemente deixei de viver; junto à paragem dos TST, vejo o Edgar, não o reconheço de imediato porque já é um homem com trinta e alguns e nas minhas memórias, ele tem sempre vinte e poucos, mas sim, é o Edgar que tanto se gabava do passe social, o Edgar que seguiu a carreira do pai e se tornou carteiro, então, delirou porque os CTT lhe pagavam o passe. Continua com o seu sorriso pateta de quem à nascença fez uma razia ao atraso mental e no final da curva deu de caras como o ensino público regular. Recordo-me dele e do seu rol de alcunhas quando eu tinha uns treze anos: muito moreno e seboso, com uma propensão para o disparate, por mais punido que fosse, por mais vezes que o espancassem no café do Manel, que o deitassem no contentor do lixo ao pé da escola em construção, não conseguia ficar calado - era a paralisia cerebral ou a idiotice iletrada... Faziam-lhe tudo, humilhavam-no numa reverberação qualquer de uma virgindade não perdida, tipos mais novos que ele mas mais velhos que eu. Recordo-me de ouvir a minha mãe dizer mal da mãe dele, que delirava por entre as bancas dos feirantes, numa qualquer manhã, por entre raides de grandeza e ideias persecutórias transmitidas com grunhidos agudos e interjeições analfabetas.
Às vezes eu defendia-te, porque me entristecia mesmo o que te faziam, ao ponto de uma lágrima começar a escorrer-me discretamente pela minha vista das lágrimas. Tinha uma moralidade forte, um sentido de justiça que depois se foi extraviando com o evoluir, com os conhecimentos e livros que li, com os jogos de xadrez, com a alimentação e uma ou outra ejaculação. Enfrentava aqueles tipos irritantes que troçavam de ti e te usavam para alimentar uma histeria colectiva que camuflava as suas frustrações muito pessoais. Era bem mais pequeno e ao início não me ligavam, não ligavam ao fedelho de ombros exíguos e com madeixas de cabelo sempre a caírem para os olhos, mas eu era tão determinado, os meus punhos falaram por mim e o nariz quebrou-se-me algumas vezes.
Acho que o meu irmão nunca me perdoou tê-lo defendido, via-o a olhar-me completamente irado, enquanto eles troçavam de mim e da minha indignação, enquanto gozavam comigo por o meu pai ser camionista e eu vestir-me com coisas gastas e feias... eles sentiam tudo isso, então aproveitavam para gozar com o meu irmão para que ele ainda mais me odiasse, chegavam ao cúmulo de o "adoptar" no seu grupo, desde que ele comigo também gozasse. Apanhavam o balanço e troçavam por eu ter confessado a minha paixão a uma rapariga que ali passava por volta das 18horas, vinda da escola; estavam todos, eles mais velhos, ali juntos à espera da sua passagem, dos seus cabelos pretos, do seu sorriso de embriagada. Ela vinha quase sempre acompanhada de dois ou três tipos de ar e fama feroz, então, raramente troçavam comigo durante a sua passagem, mas lá de vez em quando... Gozavam, riam porque eu não tinha hipótese... todos a queriam... mas quantos sentiam o aperto no estômago quando ela passava, quantos tremiam e se sentiam vivos ao vê-la naqueles jeans apertados com os joelhos quase a baterem um no outro enquanto se ia aproximando daquela esquina e depois afastando?
E se ela me tivesse dito que sim, se me tivesse levado para a sua espiral de auto-destruição, saberia eu as tais palavras?
Não me lembro mesmo de quem me disse aquilo...

domingo, fevereiro 1

Convite

Venham a minha casa passar o tempo que agora se mostra tão amarelo e gangrenado; tenho algumas cadeiras bambas; janelas que abrem ao contrário e dão vista para o imenso e soturno cemitério de pinheiros e ribeiros a que chamamos subúrbio.
Falemos directamente, deixemos sair as inquietações dissimuladas de gracejos, entrar a opulência de uma morte anunciada que ressalta no alcatrão húmido e lamacento. Encostemos nossas peles oleosas onde o viço morreu sufocado, à janela e observemos através das gotas de chuva no vidro (urina da biodegradação), as luzes fátuas dos autocarros que trepidam no decrépito conjunto de ruas esburacadas e desniveladas que traçam o nosso rumo, o nosso desimportante rumo que não faz diferença alguma. Oiçamos os graves que outrora foram agudos, gritos da mãe para seu irrequieto rebento que nunca se ouve, que nunca se vê - foda-se morreu, morreu!!!; o borbulhar da canalização entupida por resilientes dejectos que se prostram e nos mostram que a porcaria tende sempre a vir ao de cima; os passos endiabrados que trouxeram do café lá em baixo até à minha porta, alguém, um vizinho que por mais vezes que comigo se cruze, será um estranho, um verdadeiro idiota que nem a televisão consegue dobrar. Aquela, bela, condescende, indulgente, indulgente, meretriz, meretriz, me-re-triz, meretrizzzzzzzzzzzzz, presta-lhe atenção, presta-lhe atenção, atenção, atenção!!!
Por fim, quando estivermos altamente alterados por chá com um qualquer toque de pensal e baraticida, descendamos aos esgotos, onde é sempre funeral, onde o féretro nunca termina a sua caminhada, volta e volta, torna e torna - as nossas pequenas mortes, os nossos pequenos assassinatos, os cagalhões, vejamo-los infinitos, a morrer, a perecer, partes de nós, processados por nós, abortos espontâneos, dores nossas, amores, sentimentos, frustrações; andemos nos esgotos, saltemos para não pisar os cadáveres, tapemos o nariz não para evitar o fedor, mas sim aquele odor a pinheiro, aquela frescura matutina que permitia ver as lebres céleres a pisar a erva e a caruma, sem um rumo que não fosse aquele que não tiveram de escolher. Cobertos de opróbrio, descobrimos que o ascetismo morreu também, numa feze qualquer, o bom-senso não é também, mais que aquela mixórdia parasitada por lombrigas. Tudo se desfaz e ouvi-mo-lo a desfazer-se, tal como ouvimos o ruído da água a correr, aqui, nos esgotos por baixo da minha casa, ruído que soa tão bem, é tão belo, como o da água a correr numa bela e despoluída nascente.