sexta-feira, fevereiro 26

CRETINA

Sei lá eu do medo. Quem me dera ter medo, uma coisa declarada, uma evidência empírica com correlato na sudação.

Apesar de todo o nervosismo que a insegurança gera, apesar dos receios e complexos nascidos num passado remoto, não obstante a falta da mínima confiança visceral ou lógica, a noite corria sem grandes surpresas, aparentemente, não havia uma novidade que fosse. Claro que ela não fez o jantar, alguma vez… bicos de pés, um pé 39 a bater no chão em forma de protesto, uma inclinação sob o balcão, um agachamento que faz algo em mim soltar um guincho de desespero tal é a visão… sim, partem de umas longas pernas e… que grandiosos glúteos encerram aquelas calças de pijama que estão muito justas e rotas num joelho, às quais ela dá outro nome (leggins?) – petulante volúpia, jovial pecado que cativa mas ao mesmo tempo, impõe o respeito de uma noite de gutural trovoada ou da entrada de uma magnânime catedral alicerçada em esqueletos e mentira humana. Medo? não, mas a distância e o desconforto miudinho são vibrações que em gente fraca e miserável, do calibre aqui do vosso reles autor, conseguem perturbar coisas há tanto tempo estáveis e cristalizadas. E o vosso autor… o vosso autor é feito de matéria que tem tanto de fraco como de lábil, o seu temperamento é volátil e não raras são as vezes em que o faz parecer um demente cheio de pretensão.

E foi no preciso momento em que a luz eléctrica foi preterida às velas que ela profere a seguinte frase que me tornou numa espécie de invertebrado pronto a esmagar: «…eu não te minto, mas omito imenso.» O silêncio reinou e a minha retina, enfim, sei lá eu o que aconteceu ao raio da retina; extinguiram-se os ruídos parasitas que da rua invadiam a sua casa pela janela aberta; olhei-a e o seu olhar que mantém sempre algo de alucinado, mais que provável metabolito de uma noite de drogas pesadas e memórias apagadas, indaga-me e é como se me perguntasse de forma agressiva: «algum problema com isso?» eu em silêncio tento articular qualquer coisa e aquele olhar continua a sugar-me o discernimento e a masculinidade.

Claro que há problemas com isso, claro que se tudo corresse bem, poderia ter um certo grau de relaxamento e enfrentar a infeliz confissão, agora assim neste decrépito estado de coisas, com esta humidade já bafienta… Se ao menos ela tivesse mentido e forçado um sorriso num momento oportuno, se houvesse ousado dizer que me achava belo ou pelo menos, parcialmente tragável, se me elogiasse o beijo, os dedos dos pés, se tivesse dito que gostava de mim ao invés de pedir com desesperada sofreguidão de quem se apercebe que não vai ter um orgasmo, para lhe chupar os lábios com mais força, ai sim, talvez eu descontraísse um pouco e conseguisse não ficar completamente atordoado por tamanha revelação. Mas medo, não.

Pela rua da politécnica vou apressado para o metro prestes a fechar, a chuva é miúda e refresca-me os calores forjados pela fricção do nervoso com o insucesso. Um pouco mais ao fundo vem uma tipa gorda de coxas gelatinosas, que corre durante um par de passos agitando a sua mala vermelha, depois, com um ar de atroz sofrimento, retoma o trote. Lá vou eu, ainda passo por uma espécie de festa na faculdade de Letras e ao invés da raiva habitual que nutro por quem vai a festas e grita no meio da rua sem ser por simples insanidade, sou complacente e penso algo como «estão a viver os melhores dias da sua existência», mas nem quero saber disso para nada.

Deito-me, decido sabotar a TV e fico um bocado triste por não teres convidado esta reles carcaça a dormir nem que fosse, no teu sofá. Mas medo? Não, não tenho medo.

domingo, fevereiro 14

3M - mais um mau texto

Um corpúsculo qualquer atiça-me uma memória aleatória através do meu totoloto mental. Leva-me para a adolescência - período interessante, algo atípico no meu caso. E que acontecia nesse período? As mulheres ainda me rejeitavam, rejeitavam-me com tanta facilidade, como se eu fosse uma espécie de desalmado vazio, de aparelho mecânico que ali calhara aparecer. Lembro-me dos seus olhares de desdém, do escárnio que libertavam quando eu, ao invés de lhes espetar dois lânguidos e repletos de germes, beijos na cara coberta pela secreta oleosidade que também faz crescer os seios e os pêlos púbicos, lhes esticava a minha mão com dedos tortos e indicadores de pouca perícia no secreto dedilhar que eu ainda nunca havia experimentado. A última vez que fui rejeitado antes de conseguir aceder a uma intimidade que só mesmo a obtusidade da idade imberbe me fazia querer exclusiva, foi no primeiro ano de faculdade, algures na viragem do milénio, depois de ter sido rejeitado pela rapariga dos dentes de castor. Ela era alta e loira, falava demasiado baixo e era completamente desprovida de sentido de humor entre outras coisas que como essa, para nada importam; morava em Carcavelos, por cima de um cabeleireiro ou uma escola de condução, não me lembro bem. Tinha a pele alva que eu imaginava cheirar a pêssego e um passado esquecido algures pela África do Sul. Bem, nada disto é importante, ficou apenas o registo de ter sido a última a rejeitar-me nas condições atrás referidas; nem as caminhadas até Porto Brandão, nem os ridículos comportamentos dignos do jovem Werther a dissuadiram de simplesmente ignorar-me e provocar-me ridículos lacrimejares durante crepúsculos passados em cacilheiros repletos de anónimos.
As mulheres quando se aproximam dos 30 e por um qualquer motivo, que não importa agora decorrer sobre (façamos de conta que é magia), estão sós, entram num estado especial de verosímil decadência embora depilem as virilhas com maior frequência, é uma disposição que se recuassem uma década, não conseguiriam perceber, discernir, mas, as pessoas não regressam ao passado para analisar, para reflectir, se o fizessem, claro que não estariam sempre a cometer os mesmos erros, a magoar das mesmas maneiras, a magoarem-se com as mesmas pessoas e até objectos; haveria menos agonia e menos órfãos e as mulheres solteiras de 30 anos, ainda conseguiriam rejeitar.
Esse estado especial que lhes torna a volúpia em banal carnalidade catalisada pelo relógio biológico, em termos de linguagem, reflecte-se apenas em três prerrogativas acerca daquilo que querem (um homem).
1º Tem de ser solteiro.
2º Tem de ter emprego.
3º Tem de ter uma libido saudável.
Claro que o cumprimento das duas primeiras premissas, irá permitir que testem a 3ª (Ok, nem sempre, por vezes dão por elas próprias na cama com alguém cujo pedigree ainda é unknown). E mais óbvio que isso: se um de vós for um tipo que anda recentemente a pinar um tipa de 30 anos ou arrabaldes, solteira, sabe! fixa! que se não fosses tu, era outro, muito melhor que tu, muito pior que tu, tanto faz, ninguém quer mesmo saber. Se ela por acaso for divorciada e acontecer ter filhos, fica a saber que nem precisarias de ser humano, podias facilmente ser substituído por um canídeo e uma lata de de manteiga de amendoim, o preço do víveres irá decidir entre os dois.
Mas não se pense que a vida das mulheres é fácil, não pensem que aquele trio de categorias é fácil de preencher. Não seus idiotas, não tem de ser um emprego pomposo, basta para a mulher que seja relativamente estável que a sua natural capacidade de condescender e embelezar a realidade, faz o resto; as mulheres, por mais incrível que pareça, até gostam de polícias; adoram operários fabris e tudo o que for de declarado colarinho azul - nada como umas mãos com calosidades e uma rudeza declarada que deixa adivinhar uma boa satisfação da 3ª condição. Mas hoje em dia há tanto desemprego... Também não é fácil encontrar um tipo verdadeiramente solteiro, que não tenha jogos, filmes, dvds, coisas estranhas que a mulher, tantas vezes, engole em seco e tenta fingir que não sabe das mesmas. A 3ª condição, enfim, o meu senso de ironia impede-me de a comentar, não vá eu ter um ataque de epilepsia de tanto poder divagar.
Pobres delas... dedicam horas a um olhar que circundam com uma carregada linha negra, para se embelezarem, para parecerem menos mal dentro da formosura que como um membro que foi recentemente decepado, ainda se faz sentir através de verosímeis palpitações, num reflexo, numa nuvem difusa que por vezes, à luz das velas perfumadas, se revela no espelho ligeiramente embaciado pelo banho de há minutos. O cabelo penteado com cuidado, a melhor roupa, interior, entenda-se. Sonhos, ilusões, planos, um homem... Um homem apenas, que durante aqueles preparativos, durante o confeccionar da sobremesa ou do refugado, não aparece sob qualquer avatar, é apenas uma peça que cabe no puzle, com ou sem tesoura, com ou sem batota, com ou sem dignidade feminina, caberá, servirá, trará uma felicidade que só se revela num nível de vida, nas tardes em que não está, nas conversas com as amigas solteiras, na construção de um rebento e consequente respirar de alívio. Não pensem que é fácil, não pensem que não as respeito. Vejo-as, nas suas barrigas, nas suas estrias, no cansaço, na inépcia, no não fazerem nada bem e no ouvir de palavras secas, no descobrir coisas e guardar, ofuscá-las «se não pensar nelas, não existem». Subjugam-se, ejaculam-lhes para a face, para o cabelo que fica todo empecilhado, batem-lhes e elogiam outras, da televisão, do prédio, a rapariga de 14 anos que por ali ciranda para a delícia perversa do homem que outrora, ela preferiu à solidão, ao fantasma da esterilidade que tanto pairava aquando os horríveis pesadelos...
Já não há amor para dar, existem apenas hiatos para preencher, reflexos para se libertar e um grande frio na cama. Quanto mais gordas forem, mais frio têm, pois o seu volume levanta mais os lençóis, o que provoca maiores correntes de ar.

sexta-feira, fevereiro 12

Le Mépris, de facto, é um grande filme sobre relações amorosas, mas duvido que a BB o tenha compreendido.

Sei bem, até porque fui eu que o escrevi, que, a partir de certa idade as pessoas estão completamente fodidas: por dentro, por fora, na crosta, no âmago do tracto intestinal, por onde quer que seja. Mas começo agora a perceber que as mulheres e os homens diferem muito em termos de fodidagem psicofisiológica.
Os homens, basicamente, ficaram presos num passado, numa mulher, num fantasma de volúpia e num conjunto de hábitos evocadores de momentos que aconteceram e momentos que não tiveram oportunidade de o ser - recordam-se dos cabelos, do sorriso, do aroma, de uma tarde soalheira num nicho medieval, de uma blusa, dumas cuecas, de uma camisola, dumas calças que assentavam particularmente bem ou de um olhar na praia estando ela com o cabelo molhado e os olhos abrilhantados pela salinidade. As mulheres, enfim, as mulheres... as mulheres essencialmente, para além de segundo elas, raramente se recordarem dos conteúdos oníricos das suas noites, recordam-se duma pila. As mulheres não acham que alguma das suas relações passadas (onde certamente terão investido bastante) era perfeita, bela, grandiosa; nenhuma mulher fica triste por já não poder partilhar certas coisas com um tipo: se ele ou ela terminaram a relação, era porque a mesma não era ideal, tinha de findar, então, sonham é com outra relação, mas... fica a pila... fica como que armazenada não se sabe se num qualquer local do sistema límbico ou mesmo nas próprias paredes da vagina.
A pila que as fazia vir, a pila que as preenchia e as deixava com a impressão de ser a medida ideal embora soubessem claramente que podiam aguentar com algo bem maior. As mulheres têm pânico de não voltar a encontrar uma pila tão adequada, então, andam de relação em relação, cheias de temores e calafrios soturnos, medindo pilas, sentindo escrotos e prepúcios, sendo alguns deles imensamente bizarros e sinistros. Vão dizendo para elas mesmas, que o que importa são outras coisas: um emprego estável, uma conversa adequada, um meio de transporte eficaz e um tecto sólido. Um aspecto decente e digno de ser ostentado e exibido ou pelo menos, capaz de não as embaraçar pelas deambulações sociais que até nem têm de ser muitas.
Mas depois... aparece o gajo da pila. Cruza-se com ela na rua e. exibe o seu ar seguro, ele sabe que tem um poder sobre ela, então lança um olhar arrogante e dominador, sente-se claramente que ali há qualquer coisa e nessa noite... nessa noite não há sexo, ela não sabe bem porque não o quer fazer, mas, é apenas por fidelidade àquele naco de carne e músculo de textura fibro-esponjosa.
Quem nos manda esperar até depois dos 30 para emparelhar...
Se o homem encontra na rua a ex-namorada que o deixou, que o destruiu, a qual ele ainda admira e acha uma das mulheres mais belas que já viu, não fica com uma erecção, fica nostálgico e provavelmente, mal-disposto o resto dia. Se uma mulher se cruza com o gajo-pila, fica com a greta completamente lubrificada e age de forma nervosa e descontextualizada, talvez até tenha espasmos e arrepios, não se sabe.
A miséria não as aquece nem arrefece, o fantasma não é o outro tipo, pois ele foi esquecido, ultrapassado, dado como inapto por uma qualquer razão, mas o pénis... o pénis atiça-lhes as memórias carnais, aguça-lhes o espírito arguto e inconveniente quando se tem uma idade tal, que a pressão para emparelhar se começa a fazer sentir...
O curioso nisto tudo, é que um homem, pode ser tanto o homem-pénis para uma, como o homem bom para casar com quem ela se tem de remediar, para outras. Qual o melhor? O melhor é não pensar nestas merdas e arranjar uma tipa obesa que além de não ter fantasias com outros, certamente que fará o melhor sexo oral de sempre.

sexta-feira, fevereiro 5

O polvo do Modelo, de facto, é uma merda.

Já estava a desconfiar. Em silêncio perscrutava os seus movimentos, auscultava as suas palavras vulgares e sua ridícula prosódia. Ela abanava a sua cabeleira descolorada e movimentava-se como que dominasse todo aquele espaço. Eu estava naquela fila e não ia deixar que me passassem à frente, não que tivesse qualquer tipo de pressa, porque naquele momento nada urgia; uns momentos perdidos numa fila até eram uma bela moratória para a minha consciência afogueada com minutos sobre minutos de nada, mas, o fantasma da bananice aliado ao aquilo que os outros pensam, alardearam-me os sentidos, tornando-me arguto e vígil.
- Desculpe, eu estava à sua frente - adianto-me eu interrompendo o seu pedido.
- Ah...
- Ah não, pareceu-me bastante evidente que estava à sua frente, a percepção de uma fila é uma coisa completamente à prova de idiotas.
E pronto, fiquei satisfeito, repôs-se a justiça social e enfim, fiquei um pouco mais parecido com a minha mãe.

segunda-feira, fevereiro 1

Red House Painters

O tempo passa e por mais que as coisas à superfície pareçam alterar-se, nada muda. Está tudo na mesma e não fossem as cores e as rugas precoces, seria demasiado bizarro encarar o suceder dos dias. A bicicleta está parada, mas ainda assim, é como se continuássemos os dois pelos terrenos baldios da margem sul, numa solidão pícara e com lágrimas desviadas pelo vento que me agride a face com mosquitos e papéis que embrulharam algo doce. Sinto exactamente as mesmas coisas: sinto-me como me sentia há um ano atrás, há dois, dez anos... sinto-me como naquele dia em que sai da escola primária nº 5 às 18:15 que era quando tocava e enquanto caminhava e atravessa becos escuros e canaviais, sofria com o tépido anúncio de um doente existir e uma rejeição generalizada. Agora espreito pela janela e o que vejo é diferente: já não é o pinheiro cujos pinhões comia, nem aquele imenso mato que cada ano ficava mais exíguo e sem espaço para respirar ou assustar os mais novos com as suas estórias de ciganos funestos, já não vislumbro a Rita gorda a meter as pernas para dentro ou o Zé mulher a expiar os cantos do bairro; agora vejo uma rotunda que ainda mantém os enfeites de Natal e uma escola primária onde se geram quilos de banalidade; mas é tudo a mesma coisa, só o ângulo mudou. O olhar, vago, perde-se na orla do horizonte, sequiosamente procura o verde, o ouvido tenta alcançar o longínquo murmúrio da natureza e o descontido suspiro do vento - tal como antes... Tudo o mesmo, até os flatos soam como antes soavam.
As pessoas continuam a contar-me todos os factos e delírios das suas vidas e eu, raramente interessado, continuo a ouvir, a opinar, a sugerir, a tentar, de forma inconsequente, auxiliar com a sapiência advinda da amargura e sarapintada com algum bom-senso. Ninguém me quer ouvir a mim a não ser que eu esteja a falar deles próprios e eu, aceito isso como uma fatalidade aspergida por um nada de mel na desolação que me traz, é como a maldição de um conto de fadas, que espera, implora, na ignorância, para ser quebrada. Sirvo para preencher um momento vazio, uma frívola necessidade de aceitação, para escutar um titubear sem sentido, para compensar o mal que lhes fizeram, para receber um olhar inquisitivo quando a noite vai longa «que faço aqui com este tipo?!», sirvo para quando a minha imagem não aparece, quando mais ninguém nos vê, ser o fechar do teu circuito, então dá-se o toque, a troca de qualquer coisa incógnita que envolve epidermes no escuro e sentimentos confusos que ansiosos, almejam fazer mal, magoar, agitar a estranha e mórbida calma que eu tento de forma hercúlea manter para evitar a ebulição e a explosão de todo este ódio.
Facilmente recupero a calma e revejo momentos da minha vida, sinto arrependimento mas já nem tenho aquela sede imensa de voltar atrás e fazer tudo diferente, já não pretendo recuar no tempo e fugir daquele sótão, fazer-te sentir estes punhos cerrados, este joelho cravado no teu estômago, já não quero voltar atrás e dizer-te aquela frase que me ficou atravessada por não ter tido coragem de a proferir, não, já não tenho força para desejar tal coisa e pela primeira vez na vida, senti que era preciso força para desejar o que quer que fosse e então, o arrependimento, também ele, se torna algo insípido e inconsequente, incapaz de me arrancar desta letargia sentimental. Dizem que com a idade as pessoas vão morrendo por dentro, talvez seja verdade e assim, felizmente ou não, talvez já não esteja tudo igual.