quinta-feira, setembro 30

Apenas mais uma história para o seguinte.

Custa-me no meio de todas estas coisas que não param de acontecer e escorrer por todas as frestas abertas pelo tempo, particularmente, teres feito a escolha certa e doer-te quando me notas o olhar. Incomodo-te com a minha profunda tristeza, afecto-te com um par de lágrimas que sabes existir algures. Afronto-te com a minha bondade e o meu desonrado perdão que jamais esperarias. Sabes da raiva, do ódio, da mancha de fúria que se alberga dentro de mim, sabes de tudo e isso, culpa-te, obriga-te a fazer disparates, obriga-te a manteres-me por perto esperançando que um dia eu te dê o motivo, que um dia te destrua ou que pelo menos, te parta um osso, te puxe pelos cabelos, te atire contra uma parede ou das escadas abaixo - sabes disso e sabes que seria tão fácil, sabes da besta belicosa que constantemente procura libertar-se. Fazer merda, sempre soubeste como.
Tudo escorre, como a água de cor metalizada que às ondinhas se dirige de forma indolente, para um sítio qualquer, para o sítio mais fácil e acessível – nunca complica, nunca hesita, nunca se constrange. Tal como a tua decisão, a tua comiseraçãozinha.
- Posso voltar a estar contigo, posso ajudar-te, salvar-te, mas nunca mais te toco.
- Mas eu quero ser tocada por ti.
- Jamais o voltarei a fazer.
- Mas eu preciso ser tocada.
- Haverá outro para te tocar, sempre houve. Eu preciso de não te tocar.
A noite avança pela tua casa dentro e eu fixo-me na pasta luminosa que vem da rua e nos zumbidos da cozinha entrecortados pelo ruído de um carro que em esforço sobe a tua rua muito inclinada. Estarei a tratar de ti? Pedes-me dinheiro e eu empresto, pedes para aparecer, para te socorrer de uma fobia, dum pânico caliginoso que emerge de uma esquina da tua sala e eu engendro sempre forma de te convencer que está tudo bem, o que não é fácil, pois questionas, colocas as coisas de maneira a que me seja difícil responder-te sem me desviar das minhas crenças.
Cá estou, deitado no teu sofá à espera da aurora, sem entusiasmo, apenas com o leve alento de saber que quando há sol me sinto melhor. Como pude eu ser teu namorado? Sabia perfeitamente que me irias acabar por trair e enfim, a tua conversa sempre me irritou. Mas o olhar, o teu ar… eras uma das poucas que tinha um ar interessante, que cativa, que intriga, a maioria são cepos sem grande profundidade na sensação que nos provocam, nada para lá da visceralidade que geralmente se transforma em conformismo. Então que faço eu aqui? Será por ainda me doer, será por não ter ninguém?
Apareces à porta da sala com os olhos semi-cerrados e ar de autoritarismo que se sobrepõe à irritação de um sono retardado.
- Vá, anda para a cama.
- Estou bem aqui.
- Por favor, vem para a cama, estou com uma pedrada descomunal, fumei um charro muito forte, não me apetece ficar aqui a insistir.
E subitamente voltamos aos tempos passados, longos, carregados, pícaros momentos de angústia e de um sofrimento claustrofóbico, traumas que ainda marcam, trabalham o sofrido quotidiano. Irritas-me, ofendes-me. Já não somos namorados, traíste-me, tens outro, estrangeiro e que corresponde a todos os teus anseios e desígnios amorosos. Foste para a Irlanda com um, para a Alemanha com outro.

segunda-feira, setembro 27

Coimbra

Coimbra de dia é vulgar, não lhe encontro nada de especial nem na luz nem na sombra. É transida por pessoas iguais às dos outros sítios, mas com melhor aspecto e ar mais inofensivo do que aquele ao qual estou acostumado. Tem um rio, pontes pedonais, ruas e ruelas, escadarias, colinas intransponíveis e as mulheres têm na sua grande maioria e ao contrário daquilo que se vê em Lisboa, seios bem desenvolvidos - para além de usarem calçado mais fechado e indumentárias menos arriscadas.
À noite é o degredo, não vejo roubos, violações, agressões, mas os estudantes estão com o cio da libertinagem, urinam em todo o lado e sedem apenas quando o vómito escorre pela calçada abaixo em direcção à sé velha ou ao pátio da inquisição. As mulheres, enfim, miúdas roubadas a uma qualquer família de uma Beira, autênticos répteis de tão frias estarem; litros de maquilhagem que inviabilizam qualquer expressão mais quente e não há um único sorriso feminino durante a noite que passe dos lábios e chegue aos olhos.
Alguns andam nus ao abrigo de uma tradição qualquer, outros, mais funestos devido a uma não aceitação, levam tudo à boca e tentam qualquer coisa para serem notados nem que seja por uma fada corrompida por sonhos que nunca chegou a perceber.
Transito e não gosto do que vejo, magoa-me, deixa-me tão distante, tão fora, tão inútil, pois é pouco o que posso observar que passe do nível do traço. Não há emoção em Coimbra, não há um piscar de olho, um arrepio, um frémito que evoque um par de dedos ou um toque mais prolongado.
Salvou-se aquela no Jardim Botânico, que se arriscou a encarar-me nos olhos e apanhou o susto da sua vida com o que viu.

quarta-feira, setembro 8

Uma breve história sobre o tempo

O despertador toca às sete e eu não acordo, nunca mais acordei. Não me recordo da última vez que adormeci, do último sono pacífico, do último momento tranquilo. Já não me recordo de quem era quando dormia.
Recordo-me de ter colocado o meu indicador no teu nariz, de passar os dedos pelas tuas gengivas e dentes. Lembro-me do toque… do teu aroma, da pele arepiada nas coxas… da textura dos teus lábios quando sóbria, da textura dos teus lábios quando estavas encharcada em meta-anfetaminas.
Respiro fundo de forma furiosa, enraivecida, de tremenda violência, mas não há qualquer alívio. Continua a pontada constante da angústia dentro de mim.
Ando pela rua, ando dentro do carro, pairo pelo trabalho, sempre em alerta, sempre à espera de uma chamada, sempre com receio que uma lágrima me denuncie toda a dor e fragilidade. Espreito pelas esquinas do meu ser, aguardo o momento do pique baixo do latejar, para conseguir ver a luz, aceitar o continuar. A custo me sustenho, facilmente me condeno e aceito o pouco que valho, o nada que sou. Sou um desesperado, um tipo completamente destruído por dentro. Criminoso o alento da esperança que numa noite nos engana e coloca uma máscara pouco polida na face.
A vista da janela hoje magoa-me. As horas não passam e nem sei se quero que passem, não vejo qualquer vantagem ou desvantagem em que passem. Ficar parado neste momento ou continuar a viver, é tudo demasiado parecido para que alguém com a racionalidade tão debilitada, possa equacionar. Consigo conter as lágrimas mas o ranho fluí-me de uma narina sem qualquer controlo e eu com um valente fungo tento conter a torrente. Não sei se acabei por ser bem sucedido mas vejo tudo de maneiras turvas, presumo que as lágrimas tenham conquistado o seu terreno. Não sou capaz de levantar os olhos e prescrutar se os outros me vêem ou não; se falam não os oiço, pois tenho um imenso ruído metido pelos ouvidos a dentro.
Já não como, mas, parece que nem preciso. Não sinto qualquer fome e mesmo que tente engolir qualquer coisa à força, o meu corpo rapidamente rejeita o substrato. Vou perdendo aquilo que me torna humano e vou ficando um sucedâneo de humanidade, vou-me tornando um desassossegado-major, um naufrago. Daqui a pouco saio de onde estou e deito-me na cama para mais uma tarde, uma noite, uma madrugada, de completa negritude. Talvez saia um pouco e vá à cinemateca, para poder descansado, verter lágrimas no banco de trás…
Falhei… Perdi e já não vai haver nada daquilo que imaginava, que desejava por entre as noites brancas em que te sentia ao meu lado. Cheguei a sentir-te mesmo ao meu lado, ali, estóica e firme como só um sentimento muito forte pode permitir. Estraguei sendo eu… mas não podia ser de outra maneira, era impossível e no final, talvez por culpa minha, assumo, aconteceu exactamente o que eu previra.
Resta-me esperar pela sensação de alívio e quem sabe, com um pouco de sorte à mistura, volte, se é que alguma vez aconteceu, a sentir paz.

quarta-feira, setembro 1