sexta-feira, março 13

Letra M de Marasmo, Mistério e Mostarda

Volta e meia (e só porque gosto da expressão), sou seniorsitter. Pelo nome, todos chegam lá.

Costumo ajudar ora a minha mãe, ora a minha avó, nas suas compras. Neste capítulo, a minha avó leva vantagem, uma vez que é reformada e as compras são feitas de manhã, perto da hora de almoço. Não são raros os dias em que me convida para almoçar depois das compras.

Local: restaurante de bairro, denominado “A Selva”, onde param bêbedos, desempregados, e bêbedos desempregados, sendo que estes têm justificação para beber em excesso, e as suas imperiais a 0.80€ vêm com um pires de compaixão a acompanhar.

Num dia em que o assunto fetiche para esquecer as dificuldades e crises pessoais é a morte por negligência de um bebé de 9 meses, deixado esquecido num carro pelo pai (uma fresta aberta na janela e um biberão de água era o mínimo que o pai podia deixar), consegui abster-me desse terror (mas ainda estou a pensar qual vai ser o próximo espectáculo de tiroteio em colégios… espero que o show venha cá a Portugal…). Enquanto a minha avó debitava o que ouvira e lera acerca do assunto, fingia ouvi-la e concordar com as suas opiniões. Eis senão quando (e lá está outra expressão que me apraz bastante) entram na sala de refeições do restaurante, onde comia uma alheira que não era grande espingarda (hoje é só destas… mais uma expressão simpática de utilizar), entram duas moças, dos seus 16/17 anos, e sentam-se uma em frente da outra. O empregado de mesa, brasileiro como são todos, enceta uma conversa de circunstância sem nexo, acerca da juventude e do tempo quente, talvez por um redireccionamento do fluxo sanguíneo de uma cabeça para outra.

Como de costume, o empregado de mesa coloca o menu aberto na vertical, deixando as duas jovens protegidas entre muralhas de azulejo branco de um lado, papel e plástico do outro. Curiosa cena se seguiu. Ao estarem protegidas de ambos os flancos, trocaram carícias manuais discretamente, para não serem vistas. Que ângulo digno de deuses eu tinha, pois foi-me possível assistir à troca de festas e carinhos nas mãos e antebraços com que ambas se presentearam. Descoordenado, sem oxigénio no cérebro suficiente sequer para proferir um “pai nosso” [piada xenófoba: os brasileiros, na sua maioria, são bastante religiosos. Assim, como qualquer povo ultra-religioso, foram abandonados pelo seu deus e colapsam num mar de luxúria e imundice (outra piada xenófoba, mais dissimulada que a anterior, mas igualmente ofensiva e generalizada)], coloca uma lata de Sumol de Ananás (ou pineipou, como dizem os brasileiros, que hoje são o alvo aleatoriamente escolhido) entre as duas amantes secretas. Houve um largar de mãos repentino entre estas, ao que se seguiu um olhar cúmplice e embaraçado entre as duas, após dizerem que nenhuma tinha pedido aquilo, ocasião que aproveitaram para pedir uma caneca de cerveja que dividiram.

No decorrer do almoço, enquanto a minha avó falava da vida desgraçada de alguém que eu deveria conhecer (desgraçado mas não brazuca, benz’ó deus), apanhei elementos da conversa do casal adolescente que me permitiram inferir um conflito entre uma delas e um pai ou namorado. Penso que será um pai, pois a neutralidade com que a outra falava do elemento em discussão revelava que não o conhecia, e se houvesse um namorado aquela devia conhecê-lo.

Uma relação secreta escondida num restaurante de bairro, onde os desempregados deprimidos, empregados descontentes e reformados dementes se reúnem e se embebedam, para esquecer as desgraças e crises pessoais.

Faltava mostarda na alheira. Teria ficado mais comestível.

1 comentário:

rameladoiro disse...

fixe fixe, muito bom.que ambiente.