quarta-feira, julho 16

Hoje

Nos dias que correm, no retrocesso em que existo, saio bem cedo de casa e enquanto caminho vejo a minha sombra bem esticada que chega a um sítio muito antes de eu lá por os pés. O sol nas minhas costas apazigua-me e eu sorrio porque sei que hoje ainda nos voltaremos a encontrar. Ainda nem são 7h e eu já vejo mulheres de meia-idade com tatuagens e roupas que lhes ridicularizam o corpo, a mente, os restantes dentes - não, os anos não ficam contidos nessa indumentária apertada que destaca pregas adiposas. Alguém que há muito tempo atrás eu já beijei, vai no mesmo autocarro e apesar dos anos que passámos no pleno anonimato um do outro, o constragimento é evidente - olhos que volvem para o chão conspurcado e cheio de uma película incognoscível mas depressiva, como só o chão dos transportes públicos consegue ser. Morto de sono, tento ler um livro e procuro consolo nas palavras de alguém, alento na escrita de uma pessoa já morta; sinto-me completamente amarrado a isto, a este autocarro, a estas coisas, a minha vida não pode ser assim. Não leio muito porque a retina, cansada, não consegue suportar todo o trepidar causado pelos rodados a atravessar o pavimento esburacado das estradas suburbanas; uma frase fica-me gravada na memória, acabarei por referi-la a alguém, por pura vaidade, com aquele meu ar apático. Oiço uma música e: «o que esta música me faz lembrar. ...mas quando foi a sério, não chorei assim. Pois é, da outra vez também foi a sério, foi sempre a sério» Na hora de almoço, riem-se das coisas que inspiradamente profiro, riem-se várias vezes, repetem-se as gargalhadas e ejaculações de interjeições que não conseguiram ficar contidas na boca nem retidas por alimentos em plena deglutição. Não me acho piada alguma e apetece-me vomitar para cima de tudo e todos, para cima desta merda que se sucede, sucede, sucede. Gostava de terminar com o retorno, com as expectativas, e deixar-me, pacificamente, ser coisa nenhuma.

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