segunda-feira, maio 4

A FEIRA DO LIVRO (ou outra humanização) - Full Version (que segundo críticos condescendentes necessita ser barbaramente editada) FODEI-VOS

Subo a praça com o ar do costume, com aquela essência depressiva que desde cedo me tirou a candura que me fora atribuída pelas cores do meu avatar. Para sentir uma certa intimidade no acto da leitura, compro livros já manuseados que ao contrário dos novos em folha, me permitem idealizar uma certa volúpia. Compro-os sem trocar uma única palavra com o vendedor de ar carregado que se aligeira uns milímetros no degradê das expressões faciais com a presença das notas. Julgo não estar realmente deprimido, mas creio que é assim que naturalmente pareço. A cabeça volve-me sempre para o chão, pisos que minha memória acaba por guardar e, o meu ar é tendencialmente melancólico; torno-me num suspiro invisível, numa recordação permanente, num sentimento mau que nasce devido ao findar de todos os bons que em tempos existiram e que naturalmente cessaram sem qualquer autorização por parte de minha pessoa. Está vento e várias barracas modernas e limpas preenchem a praça; vendedores de vários tipos estão atrás das bancadas e aguardam interpelações de leitores ou de pseudo leitores. Alguns dos vendedores já são uma manobra comercial: vestem t-shirts relacionadas com o tipo de livros que vendem ou são demasiado belos e musculados para o contexto. Todavia, ainda existem os misantropos que pouco se importam com aquilo que vendem, limitam-se a ver passar os dias que jamais findam com a agonia de nunca terem conseguido criar algo significativo para seu insaciável ego. Sinto frio e aperto o casaco até ao queixo irritado pelos sucessivos barbeares, o vento continua a soprar e por vezes, num instante que várias coincidências transformam em silêncio absoluto, faz-se notar através de um imperial assobio. Continuo enlevado nos meus pensamentos e com a certeza que não irei ao outro lado da praça: demasiados livros, demasiados estímulos, tenho de pôr cobro a uma necessidade, visto não ser bom precisar de coisa alguma. Rondo uma banca, quero comprar um livro mas o vendedor ali não está, penso em roubá-lo, mas, está demasiada gente. Gente desce a praça, gente sobe, conversas pedantes aqui e ali, observações incautas e despropositadas que se escapam a um desmentir, a uma correcção que um dia fatalmente acabará por chegar. Casais de namorados rondam as bancas e não compram livro nenhum, por ali deambulam porque os livros sempre foram românticos, sempre falaram sobre amor e casais, estórias romanescas e virtuosidades infinitas. Ler? Nem todos lêem; livros? não os compram, mas escrever não é só para ser lido ou comprado, o livro é muito mais, o amor também não existe apenas para ser sentido. A minha visão lavada no luto da solidão começa a dar-me fortes dores de cabeça e tudo se vai turvando. Reparo que alguém me observa, estabeleço contacto visual e o observador a mim se dirige, é o vendedor que estava na banca da frente e tomava conta daquela que continha o livro que me interessava. Compro o livro em mais uma silenciosa transacção. - Tem algum livro de Dostoiévski? - interroga uma voz feminina. - Não, agora não - responde o vendedor - tinha mas acabei de vendê-lo, mas ao longo da feira trarei mais livros dele. - Procura alguma obra em particular? - interponho-me eu. - Não, nenhuma - responde ela - quero comprar todos os livros dele. Por menos esperança que tenhamos, por mais frios e calejados que os nossos corações estejam, há sempre algo que os acorda, há sempre um choque eléctrico que nos vem pôr à prova e terminar o silêncio interior, substituindo-o pelo brutal pulsar do coração. Aqui está ele, aqui está ela, vestida de preto sem qualquer pretensão a membro de uma tribo urbana. Cabelos lisos e cara magra. Parece-me bela mas nem reparo bem. Quero dizer-lhe que já li muito Dostoiévski, que a posso ajudar a procurar, que lhe posso emprestar os meus livros, que é um autor fascinante, um pioneiro da análise da mente humana, que a adoro só por ela ter essa curiosidade, que é bela sem eu a ver, que lhe quero tocar só por ela o mencionar. - Já vi por aí alguns há venda - digo - ali naquela banca parece-me ter lá visto o Jogador - digo eu apontando para uma banca uns dez metros abaixo. Cruzamos um breve olhar, que da parte dela é regado a um agradecimento constrangido e certamente imprevisto e, seguimos em sentidos opostos. Desejo olhar para trás e faço-o passado uns passos, já não a encontro, já nem sei como ela era. Relativamente alta e morena, é o que sei. Sinto-me incomodado por a ter deixado partir sem nada tentar, sinto-me incomodado porque nada tenho a perder, sinto-me incomodado porque é assim que nascem todas as histórias românticas com algum sentido, pelo menos no meu doentio imaginário. Penso que ainda vou a tempo de voltar para trás, mas continuo a subir a rua e sei que a cada passo que dou, mais longe fico do retrocesso que a não acontecer, me atormentará por algumas horas... Encontro o Jogador e as Recordações da Casa Morta, livros que já tenho, num impulso, compro-os. Desço com passada larga e procuro-a sem grande esperança, sem acreditar que caso a encontre, lhe diga alguma coisa. Mas se não descesse, estaria a escrever isto? Talvez sim, por ser eu, porque eu escrevo sobre a realidade seja ela interessante ou não. Vejo-a, de saia e com uma espécie de xaile que lhe dá um ar distinto, não tenho a certeza que é ela, parecia-me estar de calças, mas é relativamente alta e tem o cabelo preto liso, uma cara esguia e olhar vivo e temeroso. - Toma, encontrei estes. - ofereço-lhe os livros de edição antiga e gastos por mãos alheias. - Não posso aceitar. - diz-me com um dos ares mais espantados que jamais vi. - Aceita, insisto. - Tudo bem. - agarra nos livros enquanto tenta disfarçar um sorriso de espanto. - Posso ajudar-te a procurar outros. - Mas eu vou-me já embora... - Tudo bem. - respondo constrangido, embaraçado pela clara impressão de que estou a ser inconveniente. - Ia mesmo agora apanhar o metro... - Então se não te importares, acompanho-te. - digo eu num esgar de desespero, com a minha garganta completamente seca, que me dói ao articular as palavras tal é a falta de lubrificação; sinto-me um autêntico suicida perante a subtil e iminente auto-humilhação. - Claro que não, ora essa. - responde-me ela com um sorriso e entretanto, ao mesmo tempo que me volto a sentir humano e minimamente digno, reparo num verde nos seus olhos que no primeiro contacto me tinham parecido tão castanhos. - Rita. - diz-me ela, oferecendo-me a mão para o cumprimento. - Júlio. Aperto-lhe a mão pequena e esguia que apenas senti aproximar-se, visto ter-me escapado à visão e, sinto-me feliz, animado por alguém me cumprimentar daquela forma que sem saber porque, me diz tanto. Beijos inquietam-me, deixam-me constrangido tal como qualquer espécie de precoce intimidade física. - Para onde vais? - indaga-me com um ar alegre, cheia de vida, com um sorriso que exibe um canino fora do lugar e com demasiada gengiva. Não respondo logo, fico absorto na sua dentição e numa espécie de proto-rugas junto dos olhos. - Está aqui alguém? - pergunta-me ela ao mesmo tempo que estala os dedos mesmo à frente da minha face. Talvez me apetece-se agarrar-lhe naquela mão frágil capaz de estalar os dedos de forma tão ruidosa e levá-la até perto de minha boca e nariz, depois beijá-la e nada dizer, nenhuma pergunta ouvir, sem existir um qualquer senso à procura de se manifestar. - Claro, estou cá eu - respondo mantendo-me monoexpressivo - vou para onde fores, acho eu. - Isso tem piada. - observa ela, tirando os olhos de mim devido ao constrangimento gerado pela minha inopinada resposta. Vamos em silêncio e eu sigo-a sem reparar a direcção que ela toma, noto apenas que se desvia da entrada do metro onde um pedinte me olha nos olhos e segue para uma rua íngreme onde nos cruzamos com um velho tacanho de ar pícaro que nos olha de uma maneira tão agressiva que a mim, pessoalmente, me faz sentir invadido. - Perdeste as palavras? - indaga-me acerca do meu silêncio. - Talvez nunca as tenha encontrado. - É por isso que lês? - Provavelmente - respondo sob a forma de um suspiro - e tu, porque lês? - Leio pouco, apenas calhou passar por ali. Continuamos a subir, agora por ruelas estreitas ladeadas por prédios de quatro andares em que nas janelas está roupa branca estendida e ali mais à frente, o passeio muito estreito está ocupado por um saco de entulho que invade parte da estrada e dificulta a passagem dos carros que quando ali transitam descaracterizam a pasta sonora, abafando o som de talheres de pessoas que jantam, dos impropérios de discussões audíveis em todo o quarteirão; carros que nos obrigam a adoptar a fila indiana e me permitem reparar nos seus gémeos longílineos e apertados pelas meias elásticas. - Eu vivo ali em cima - diz apontando para o final da rua, onde não havia esquina, pois o último prédio da rua tinha a parede curva. - Ali onde estão as obras? - pergunto, referindo-me a um prédio que estava com andaimes e coberto por uma espécie de rede que lhe tapava toda a alçada frontal. - Sim, é o prédio em frente desse. - Conheces bem esta zona? - pergunta-me revelando dificuldade em articular as palavras, visto o seu fôlego ter sido exaurido pela íngreme subida. - Acho que não conheço bem nenhum lugar. - És sempre tão enigmático ou tentas impressionar-me? - Hum? - É que se é o que tentas, sinto-me lisonjeada. - És bela demais para te sentires lisonjeada por mim. - Tens a certeza, já olhaste bem para mim? - pergunta-me com uma ponta de indignação na voz. Fico em silêncio, sem saber o que lhe responder, leio poucos livros com diálogos e não consigo que ela oiça os meus pensamentos que a elogiam e lhe seguram na mão frágil. - Vá, olha bem para mim. - diz ela enquanto dá dois passos mais rápidos e se coloca à minha frente de braços abertos, impedindo a minha passagem. Observo-a, iluminada pela luz amarela brotada por um pituresco candeeiro. Ela fecha os braços e ali fica, fixa nos meus olhos que a perscrutam com atenção, usufruindo daquela oportunidade o mais que podem. O seu xaile fino abre-se um pouco com o vento e noto-lhe os ombros esguios e ossudos, subo o olhar e vejo-lhe as orelhas com vários furos, num estranho impulso, ergo a minha mão e desvio-lhe a franja encontrando uma grande cicatriz, ela engole em seco mas não se move. - Já viste tudo? - pergunta-me, nervosa, intensa... - Não. - respondo de forma seca e determinada. - Já chega. Responde-me e volta-se de costas para mim. Parece-me que compõe a franja e respira fundo. Fica alguns segundos de costas e eu não me atrevo a dizer ou a fazer o que quer que seja. Repentinamente volta-se e: - Não, agora não vou permitir que analises ao pormenor o meu rabo, agora é a minha vez de te ver bem. Olha-me nos olhos com um sorriso nos lábios que se revela efémero pois logo desaparece substituido por uma expressão carregada de curiosidade e atenção. Sinto-me tão inseguro enquanto extático sou detalhadamente observado por aquela estranha. No minuto em que ela me observa e pela primeira vez sinto o seu perfume, penso no céu alaranjado pelo crepúsculo, que sem ver, sei que está atrás de mim e que contrasta com este tão escuro que aparece no Leste, penso também no quão mal ela vai achar da minha fronte demasiado proeminente, das minhas orelhas grandes e com pêlos, dos meus lábios secos e gretados que ela agora, com um dedo, percorre. Passado um pouco, pára e encosta-se à parede do prédio por onde sai uma criança de calções com uma bola de futebol na mão, fica de lado para mim e vejo o seu perfil de queixo pequeno e nariz empinado. - Isto é tudo um bocado estranho, não é? - pergunta-me olhando para o céu que aparece sem núvens logo a seguir aos lençóis brancos que se agitam bastante com o vento forte. - Somos dois estranhos, normal que seja estranho. - respondo, novamente lacónico. - Trazes essas frases escritas num papel? - petulante, provoca-me. Fico em silêncio, pois não sei o que responder. - O teu silêncio intriga-me. - O meu silêncio não tem qualquer intenção consciente. - Mais uma dessas frases? - gozas comigo de forma ansiosa, com uma gesticulação particular que só agora começo a notar. - Saem-me... - tento eu justificar-me. - Frases perfeitinhas e ofereces livros, é assim que engatas? Ris-te nervosamente e como olho para o céu ao invés dos teus olhos, ficas com um ar pesado e arrependes-te da tua afoiteza. - Pareceu-me que devia a mim mesmo a oportunidade de te galantear. É a vez dela ficar em silêncio, fixa em mim e com os contornos esguios iluminados pelos faróis de um carro que aparece por trás. - Achas que foi demasiada afoiteza de minha parte? - Talvez - responde de chofre - mas as pessoas têm de se conhecer de alguma fora e eu não sou defensora de mecanismos assépticos. - Ainda bem. - Porra, nunca sorris? - indaga, adaptando a impaciência e o nervosismo que sentia à questão que colocou. - Será que o sorriso é assim tão importante? - Claro que é. - É que toda a gente me cobra o facto de não sorrir, parece que... mas porque raio é tão importante? - Sei lá, é uma coisa primitiva, um guia para o sucesso interpessoal. - Um guia para a normalidade? - indago eu com algum azedume. - Não tem a ver com isso... - Então tem a ver com o quê? - Tem a ver com o facto daquilo que tu fazes indicar que gostas de mim, mas eu olho para ti e nada me diz que gostas de mim, fico completamente baralhada, porque me parece que nada sentes e eu preciso de ver em ti, não posso simplesmente ouvir as tuas palavras frias e ver os teus gestos alexitímicos para acreditar que gostas de mim. Volvo a cabeça para baixo e procuro dentro de mim algo que apazigue os seus anseios e algo que prove a mim mesmo que eu sinto, que todas as minhas acções desde há momentos têm fundamento. Precipito-me para ela e beijo-a lentamente com os meus lábios secos e gretados, agarro-lhe as mãos e sinto todas reentrâncias e saliências dos seus dedos frágeis e femininos, aproximo-me e surge um natural abraço acompanhado por contactos linguais e trocas salivares bem doseadas. O pulsar do coração invade-me todo o celoma e corro o risco de ficar surdo se assim continuar, mas não me importo, não me importo deste ser o último ruído que ouço, deste som terminar com a minha existência que no fundo, por mais subterfúgios que encontre, sempre procurou encaminhar-se para este momento ou para momentos muito semelhantes a este. - Muito obrigado. Agradece-me com um sorriso de alívio e intriga-me com tal deferência. - Porque raio me agradeces? - Porque pela primeira vez desde há muito tempo, não me sinto como um trapo velho, um ensaio nunca transformado em cena. - És sempre tão transparente? - Não o consigo evitar, a minha transparência é tão fácil, a minha paixão tão aberta e intensa, amo-te loucamente e digo-to já, mesmo sabendo que tal coisa não se diz e só me faz ter a perder. - Admiro-te por dizeres isso, embora não saiba porque. - Lá estás tu com as tuas frases, meu amor. Passadas algumas semanas que talvez tenham sido apenas dias muito intensos de uma perfeição incomportável que na ausência um do outro traz angústias atrozes e ansiedades de separação, acontece algo: - Porque raio me ofereceste livros de Dostoiévski? - pergunta com um confiante e triunfal ar de curiosidade - nunca foi autor que gostasse, demasiado realista. - Mas tu andavas à procura de livros dele... - Eu? - Sim, tu. - Deves ter-me confundido com alguém, meu amor... P.S. Muita gente fez força para esta estória não ser publicada, disseram-me que estava uma merda e que era a pior coisa que eu já havia escrito. Mas, existem coisas que têm de ser contadas. O Júlio assim desejaria. Que descanses em paz, camarada.

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