segunda-feira, dezembro 21

Sem título

Cresce-se no sítio onde se cresce e há meses sempre melhores que outros. Saltos atrevidos na casa em obras, quedas de metros a pique, lutas entre irmãos, sangue, ossos partidos. Dias que passam de uma maneira tal que se cravam na nossa memória; dias que nem existem mas que se recordam melhor que milhares de outros que se fizeram sentir de forma tão asséptica, tão anestésica, que é como se para nada tivessem contado. São tantos os dias que não contam para nada. Tenho recordações da minha imaginação, memórias de um olhar que despoletou horas e horas de uma vida que não foi vivida, de momentos que nunca chegaram a ocorrer e nem por um segundo pensei que realmente pudessem acontecer. A erva todos os anos mudava, naquele baldio, secava e ficava viçosa outra vez; vezes sem conta a observava e subitamente, é isso que atribui sentido a todo um passado - ridículo. Agora a imaginação não me conduz para esses caminhos, para esses recantos de prazer e realização, leva-me apenas para o lado mais grotesco, bizarro, descrente. Perdi os sorrisos de sincero deleite, os arrepios de tão atrevida e prazenteira suposição; agora rio-me porque as coisas que imagino têm piada, têm graça mas não me aquecem a alma nem queimam horas na cama quando até temos sono. Agora tenho insónias duras e violentas, deixei de ter noites brancas em que de maneira rocambolesca, dançava na neve ou via o reflexo do sol poente nos teus braços desnudados, agora tenho insónias preenchidas por um agoniante vazio que sou eu, Nada.
Dantes ainda sofria e era algo em que me aplicava e obtinha bons resultados, sofria com as desilusões, com o mal que me faziam, com todos aqueles planos abortados. Já não posso sofrer! Já não posso sofrer porque o sofrimento que causei não me autoriza tal veleidade, não me deixa a consciência em paz, proíbe-me as lágrimas que tentam arrombar uma idiota barreira de masculinidade adquirida por aculturação. Fiz-lhe tanto mal, a uma, a outra, a alguém. É um turbilhão dentro do mim que me faz sentir ridículo por me considerar monista. Tudo entra, nada sai.
Limpo os olhos e seco as mãos que lavei na água fria, olho-me no espelho e sinto desdém. Compro porcarias para comer e meto-me a correr esperando ficar ainda mais anestesiado, desta vez pelo frio e por uma qualquer falta de energia pois não como há umas 30h. As reverberações e os lamentos continuam a querer sair mas não posso deixar, não posso ser hipócrita, não posso ser um merdas autocentrado numa vulgar identidade, não posso ser como eles, como os que oiço, tenho obrigações.
Sobram-me os sonhos, que são quase sempre belos e agradáveis, leves e ternurentos. Quero aprender a controlá-los, quero torná-los lúcidos e passar a viver, a realizar-me num mundo onírico, quero esquecer estes 73kg e sentir-me sempre leve, capaz de voar, capaz de amar. Quero poder voltar a poder sofrer e isso, só mesmo nos sonhos...

1 comentário:

Anónimo disse...

Não pode existir sofrimento mais profundo do que aquele que fica aquém de ser sofrido...