sábado, outubro 10

Num qualquer gerúndio

"Nem feliz nem contente... Estou como estou."
É assim que respondo quando me atiçam com banalidades assépticas que não têm em consideração a minha personalidade, a minha sede, a mágoa dos dias que correm de maneira determinada para aquela agonia dos últimos anos, para o desejo doentio de voltar atrás e recomeçar, aproveitar tudo de forma consciente e amoral, usufruir, usar o mundo, as pessoas, os animais, até ao tutano, até ao esgotamento das suas propriedades, categorias, ilusões, fraquezas e comichões. Vejo-me paquidérmico e frio, a olhar para o nada, calado, conformado, a sofrer infinitas dores que não conseguem ombrear com a lancinante agonia de ter sido quem fui e ter apenas vivido a vida que vivi. Miríades de palavras esdrúxulas que eu infelizmente consigo discernir, fazem-me sentir um verme; sempre que respondo, apetece-me perder para sempre numa gruta escura e húmida, sem um raio de sol que seja, sem um corpo bronzeado, brisas ou marésias, sempre que deixo de ignorar aqueles amontoados de letras que se projectam para mim, para o meu córtex occipital, uma dor horrenda trespassa-me algo para lá do corpóreo, chego a desejar morrer.
"És bom demais para esta merda e a solidão é uma fraqueza que tens de ultrapassar".
Uma pessoa vende-se pela promessa de uma interacção completamente incipiente, prostitui-se por um calor tépido, por um odor sexual, por uns minutos de fricção vazia entre escarras de auto-estimas extraviadas. Vende-se, desliga a cabeça do corpo, mete um pedaço de plástico e... deixa de ser quem é, deixa de dizer somente o que pensa, de fazer apenas o que lhe apetece, de troçar, de agredir, de ofender, de destruir, de amarrrrrrrrrrrrrrrr. Vendemo-nos porque nos tornam fracos, tornam-nos débeis com a sua normalidade. "Nunca sairia contigo porque... sei lá, não és normal; por exemplo, em vez de me perguntares de onde sou, perguntaste se sou do Norte ou do Sul".
Talvez devesse sorrir mais, empatizar com facilidade, tomar banho todos os dias, ouvir Rita Redshoes e Ornatos Violeta, talvez devesse emborcar medicamentos, educar os neurotransmissores, pagar por terapia e ostentar posses materiais, para além de dormir 8 horas e tomar 3 refeições por dia. Devia sair e confraternizar, ter conversar banais e agradáveis, deixar as coisas fluirem lentamente, sem interpor um qualquer comentário obsceno ou intrusivo;, contemplar sem olhar fixamente, apaixonar-me em silêncio, matar toda a minha sinceridade que nada tem a ver com verdade, mas apenas com fidelidade para comigo, talvez devesse liquidar a minha afoiteza, a astúcia, o meu lóbulo frontal, transformar-me numa máquina que aprende apenas através de imitação. Talvez não devesse ter lido a morte de Ivan Ilitch, talvez devesse ter lido muitos e importantes livros, mas não ter percebido nenhum e ter saltado imensas páginas. Talvez devesse ter estilo e fazer um enxerto capilar.
"Descobre o que realmente desejas e vai à procura, irás encontrar"
Ai ai ai... Que raio de frase, que na verdade significa: encontra alguma coisa que te faça sentir menos mal, adapta-te a ela e desiste de tudo o resto; pára de sonhar, pára com os pensamentos perniciosos, fica com aquilo que não tens de pagar, é gratuito e carícias dessas não têm preço, carinhos daqueles não se vendem em qualquer esquina. É gorda, feia e tem halitose, mas é-te fiel e gosta de ti, permite-te completar o ciclo de vida. Um dia, mais tarde, movida por ciúmes doentios, desfigura-te a cara com ácido, mas não importa, pois nessa altura já estarás mais morto que aqueles tipos que morrem durante actos heróicos ou auto-asfixia erótica.
Escrever para quê? Não haverá relva ou clareira partilhada, caminho percorrido rumo ao moinho abandonado, não haverá parelha que entenda, que aprecie em silêncio, que saiba sem palavras, gestos ou outro tipo de indicações. Flutuar na enseada. Adormeci e perdi-me, atrasei-me da maneira mais fatal de todas, agora, é como jogar um jogo muito longo de onde, por puro orgulho, não se pode desistir, mesmo sabendo a inevitabilidade de ficar em último lugar. Resta-me esperar.
E não sabendo bem porquê, sinto um certo desconforto por ter escrito isto e arrependo-me ainda antes de carregar no botão.
Tenho calor, depois frio, os ouvidos por vezes parecem fechar, os olhos embaciar e aqui dentro trabalha-se para o meu bem, pela minha saúde, todos sabem o que fazer e fazem-no bem, muito obrigado, estou-vos grato.

2 comentários:

Anónimo disse...

Olha, filho, já somos dois, a diferença é que eu emborco medicamentos e isso já é uma grande diferença, parece-me, dá-me cabo do discernimento. agora tu, tu estás mais puro.

Homem da Fruta disse...

E mais difícil ainda é aguentar a solidão quando existe alguém que pensa que tudo o que precisamos é estar acompanhados, quando de facto silêncio e angústia por vezes fazem melhor do que 4 horas de sono.

Sonho ainda com o dia em que irei deixar a cabeça para trás no sofá e ser engolido completamente pelo marasmo da televisão, para passar o resto dos meus dias em pax media.