domingo, junho 6

Mais um dia

É sabido que as pessoas só querem falar e que, custa-lhes a ouvir seja o que for quando lhes é dito directamente. Uma grande verdade. Na minha família a coisa aparece extremada: gritos, berros, uivos, dores de ouvidos, vozes em sofrimento que causam uma certa impressão aos momentaneamente obrigados a escutar. Quando um fala, aos outros, os olhos coriscam de cólera, tremem-lhes os lábios, a mandíbula simula movimentos, toda uma tensão os prepara para a sua vez de conjugar uma idiotice qualquer, cronicamente interrompida a meio. Falam do trabalho e das questões ligadas ao mesmo e eu percebo que tenho uma família maioritariamente constituída por reaccionários. Fazer o quê...
Intermitam luzes amarelas atrás da agitada folhagem das árvores e passa um coelho à frente do carro. Sigo pelas tiras de alcatrão enrugado e com o vidro ligeiramente aberto, sinto, apesar da constipação, que aquela é a temperatura ideal para viajar de carro. É mesmo fodido, vivo ali perto e que já decorei onde estão os buracos maiores dos quais me tenho de desviar.
Tanto ódio e caminhos para fazer. Os segundos dão-me o dia e a noite e arrancam-me a vida.
Ao menos não sou um daqueles tipos que parecem sempre mais arredondados do que um ser-humano pode, na realidade, ser. Aqueles que precisam ser simpáticos e queridos durante toda uma década para terem onde montar. Depois, são como os outros, creio; quando se sentem seguros tiram a máscara bebem um gole de algo e questionam-se para quê tanto cinismo e falsete. Acho que isso me alegra, não ser um deles, um desses montes de merda com a sua peculiar forma de apelo. Alegra-me amiúde, poder ser uma besta e ainda assim, haver quem se interesse, quem olhe para mim duma forma que apesar de não revelar qualquer encanto ou fascínio, diz-me que não se importa, que me tolera e não quer saber de certas merdas que para miríades de gentes, seria impeditivo. É bom não ter de fingir, não ter de sorrir nem ter de ser sempre politicamente correcto. É bom poder ser negro, fazer piadas escatológicas, fazer o apanágio de perversões, usar o humor que me apetece; é tão bom poder fazer as piadas que quero, sejam apropriadas ou não, não preciso que venha um gato fedorento para me libertar um pouco mais do jugo das efemérides, não preciso de um best seller, de um tipo na TV, de um revolucionário que me conduza o verbo para leste ou oeste, eu posso dizer sempre o que me apetece e ainda assim, só não tenho filhos porque não quero. Não tive de ser um fofinho nem de me meter com merdas e inventar que sou gay porque não me sinto homem suficiente para competir com os espécimes claramente mais favorecidos.
Depois existe outro tipo de fofinhos queriduchos mas que, a dada altura não foram bem sucedidos no performar da sua arte de olhar de cachorrinho abandonado e penteados giros que levam a um passar de mão e comentários como "tão giro" e "és louco", então, mutaram, deixaram as brincadeiras inocentes, deixaram de ser uma bengala emocional, deixaram de ir lamber o esperma alheio e tornaram-se os sedentos da cretanina, dos anabolizantes, catabolizantes, das vitaminas e batidos, do cagar mais que os outros, dos isotónicos e dos enormes recipientes de plástico com pós para misturar na água. São os espartanos de pénis pequeno, os cavalos das rações, das regras, dos segundos, dos quilogramas a mais ou a menos, dos pesos, das ranhuras, dos olhares narcísicos ao espelho e da vascularidade sebácea polvilhada a cintilantes pústulas. É outra forma de ser queriducho, é outro vicariante do insucesso. És baixinho e fraquinho, então engrossa para os lados e para a frente, mete um gigantesco e disforme V maiúsculo em cima da tua cintura e passeia-te com umas calças da salsa dentro do cu pustulento. Isso dá-te o direito de ires a decathlon com uma mediana qualquer e escolherem a tenda onde vais ressonar e em segredo, sentir-te tão pequeno quanto antes.
Pelos vistos posso dar graças por qualquer coisa, posso dar graças por ser de uma mediocridade genuína que não precisa de um invólucro ou de um preço especial, para ser consumida.

4 comentários:

Anónimo disse...

e pimba. mais nada, foda-se.


sei que não sei o quê mas sei que não vou por aí

Anónimo disse...

e se ninguém te tragasse, darias também graças ou não?
pergunto mesmo a sério.

Nada disse...

Claro que sim, caro mutante.

bulletproof disse...

:)
grande.