segunda-feira, fevereiro 1

Red House Painters

O tempo passa e por mais que as coisas à superfície pareçam alterar-se, nada muda. Está tudo na mesma e não fossem as cores e as rugas precoces, seria demasiado bizarro encarar o suceder dos dias. A bicicleta está parada, mas ainda assim, é como se continuássemos os dois pelos terrenos baldios da margem sul, numa solidão pícara e com lágrimas desviadas pelo vento que me agride a face com mosquitos e papéis que embrulharam algo doce. Sinto exactamente as mesmas coisas: sinto-me como me sentia há um ano atrás, há dois, dez anos... sinto-me como naquele dia em que sai da escola primária nº 5 às 18:15 que era quando tocava e enquanto caminhava e atravessa becos escuros e canaviais, sofria com o tépido anúncio de um doente existir e uma rejeição generalizada. Agora espreito pela janela e o que vejo é diferente: já não é o pinheiro cujos pinhões comia, nem aquele imenso mato que cada ano ficava mais exíguo e sem espaço para respirar ou assustar os mais novos com as suas estórias de ciganos funestos, já não vislumbro a Rita gorda a meter as pernas para dentro ou o Zé mulher a expiar os cantos do bairro; agora vejo uma rotunda que ainda mantém os enfeites de Natal e uma escola primária onde se geram quilos de banalidade; mas é tudo a mesma coisa, só o ângulo mudou. O olhar, vago, perde-se na orla do horizonte, sequiosamente procura o verde, o ouvido tenta alcançar o longínquo murmúrio da natureza e o descontido suspiro do vento - tal como antes... Tudo o mesmo, até os flatos soam como antes soavam.
As pessoas continuam a contar-me todos os factos e delírios das suas vidas e eu, raramente interessado, continuo a ouvir, a opinar, a sugerir, a tentar, de forma inconsequente, auxiliar com a sapiência advinda da amargura e sarapintada com algum bom-senso. Ninguém me quer ouvir a mim a não ser que eu esteja a falar deles próprios e eu, aceito isso como uma fatalidade aspergida por um nada de mel na desolação que me traz, é como a maldição de um conto de fadas, que espera, implora, na ignorância, para ser quebrada. Sirvo para preencher um momento vazio, uma frívola necessidade de aceitação, para escutar um titubear sem sentido, para compensar o mal que lhes fizeram, para receber um olhar inquisitivo quando a noite vai longa «que faço aqui com este tipo?!», sirvo para quando a minha imagem não aparece, quando mais ninguém nos vê, ser o fechar do teu circuito, então dá-se o toque, a troca de qualquer coisa incógnita que envolve epidermes no escuro e sentimentos confusos que ansiosos, almejam fazer mal, magoar, agitar a estranha e mórbida calma que eu tento de forma hercúlea manter para evitar a ebulição e a explosão de todo este ódio.
Facilmente recupero a calma e revejo momentos da minha vida, sinto arrependimento mas já nem tenho aquela sede imensa de voltar atrás e fazer tudo diferente, já não pretendo recuar no tempo e fugir daquele sótão, fazer-te sentir estes punhos cerrados, este joelho cravado no teu estômago, já não quero voltar atrás e dizer-te aquela frase que me ficou atravessada por não ter tido coragem de a proferir, não, já não tenho força para desejar tal coisa e pela primeira vez na vida, senti que era preciso força para desejar o que quer que fosse e então, o arrependimento, também ele, se torna algo insípido e inconsequente, incapaz de me arrancar desta letargia sentimental. Dizem que com a idade as pessoas vão morrendo por dentro, talvez seja verdade e assim, felizmente ou não, talvez já não esteja tudo igual.

2 comentários:

Anónimo disse...

epá, sim senhor, ja não sou a única.

Anónimo disse...

http://novaorpheu.tk/

Eis que surge um fórum para todos os entusiastas do rock progressivo e das suas artes envolventes!

Seria uma óptima "review"!

Valete Frates,
Nova Orpheu.