segunda-feira, novembro 1

Auto violação

Digo que te salvo o bonsai e levo-o para a minha casa, não imaginei que acabasses por vir também. Olho para o tronco da planta e sei que está perdida: definhou e os insectos divertem-se por lá, pelas rugas dos ramos ou nas folhas secas que silenciosamente gritam morte a plenos pulmões. Fiz-te o jantar e depois de ficarmos um bocado à janela, onde pelas frestas dos estores, vimos, numa janela em frente um casal a ter sexo, foste para a cozinha e ouvi-te a mexer nas coisas, como que estivesses a limpar. Estranhei e perguntei se estavas a pregar-me alguma partida: a urinar para o fogão ou defecar para o forno, parece que não e a cozinha ficou limpíssima. Não sei porque o fizeste, talvez quisesses mostrar que querias vir viver comigo, e vieste.
Vieste também porque a tua amiga não gostava de mim e te achava diferente desde que estávamos juntos. Acusava-te de tudo e mais alguma coisa, embora fizesses as coisas exactamente da mesma forma. Ela tinha planos para ti, foi o que eu te disse, mas nunca me quiseste ligar muito. Ela imaginava-te com alguém com quem ela também gostaria de ter estado, ela via-te como alguém que deveria ficar com as suas segundas escolhas, porque eram, apesar de segundas, boas demais para serem desperdiçadas. Ela via-te com um tipo do meio, via-te armada em artista, pedante, delirante, drogada, maquilhada e mais tarde, desmaquilhada, ela via-te como um adereço, um apêndice, alguém que lhe facilitaria a vida mundana e os encontros duplos, uma muleta, um vector de propagação de conhecimentos sociais, um pout-pourri para mostrar aos amigos quando eles lá fossem a casa.
Os dias correm como nunca antes haviam corrido, flúem freneticamente, deixam de se suceder pé ante pé e cessam com aqueles anúncios que de forma constante fazem o apanágio da finitude. Parece que vejo o meu interior, pela primeira vez está-me defronte dos olhos e parece-me claro, não existem movimentos involuntários, sinto e percebo cada sinapse, cada movimento peristáltico ou respiratório, até mesmo cada pulsar de coração, são por mim sentidos, programados, reflectidos, máxima verosimilhança. Levanto-me com uma certeza, levanto-me e noto a tua cara enquanto ainda dormes que ao contrário de algumas que te precederam, não adquire contornos apatetados. Pareces tão serena, tão em paz, parece que te detecto um ligeiro sorriso enquanto dormes, sorriso que quando estás acordada, poupas ao máximo, o que acaba por fazer com que um dos teus raros sorrisos, me dê a certeza de qualquer coisa, o garante de algo que ainda não consegui definir de forma clara, talvez por falta de tempo, talvez por todo o tempo que eu tenho sirva para te apreciar, sirva para nos embalar nesta nossa deambulação no mundo, nas ruas, nas avenidas e caminhos de terra batida cercados por canaviais que bailam ao vento, que percorremos e onde acabamos, num recanto mais pardacento, por ter sexo sempre da mesma forma, levanto-te a saia ou baixo-te as calças, desvio-te as cuecas para o lado e penetro-te a olhar-te para a nuca, enquanto tu com ambas as mãos te apoias no que sirva para esse efeito.
Conversamos, filmamos, temos ideias e procuramos luz. Adoro que procuremos luz, tu para filmar, eu para escrever. Idealizamos parcerias. Belo Inverno este, cheio de períodos em câmara lenta e arrepios quentes na espinha, com casacos apertados que nos protegem do frio e tu cheiras sempre tão bem... o melhor aroma de todos, um aroma a inacessível. Sentados numa paragem de autocarro, captas as luzes dos faróis, dos semáforos, dos candeeiros, as reflectidas nas roupas das pessoas e no alcatrão molhado pelas chuvas que amiúde caem. Comemos num sítio qualquer, sempre a olhar mais um para o outro do que para a comida, eu nunca aguento muito e sorrio passados alguns minutos, tu ali ficas, estóica, com um ar sério e meditativo, eu, forte, consigo sempre resistir à tentação de te perguntar no que estás a pensar.
De mãos dadas e a sentirmo-nos belos dadas as palavras e os gestos que soltamos ou criamos, trespassamos propriedades privadas que tu pensas estarem abertas ao público e levo-te aos recantos onde ninguém leva as namoradas. Explico-te o que são salgueiros, plátanos, sequóias, urzes, gramíneas e o que mais aparecer. Deitamo-nos numa clareira e vemos lebres, corvos, melros, lemos passagens de livros à beira de um palacete decrépito que ameaça ruir, rebolamos e damos cambalhotas, fazemos o pino e por instantes, a consciência deixa-me sisudo: mais uma falta ao trabalho ou mais uma punhalada do realismo extremo, que me gela, que me faz ver vulgaridade em nós, banalidade, trivialidade, em mim, nos meus sentimentos, que me faz acreditar que tudo é falso e que estamos, claramente, completamente fodidos por dentro e que o que eu digo, digo apenas por soar bem.
Roubamos coisas nos hipermercados, no início achavas mal e ficavas mesmo nervosa e irritada, depois, expliquei-te a razão de não haver qualquer problema em roubar nos hipermercados, compreendeste e aceitaste, tal como aceitaste a grande maioria das minhas filosofias e regras morais a que eu dedico tanto tempo. Mostras-me as tuas roupas novas e eu gosto, mostras-me os teus pratos novos e eu gosto, cozinho para ti e tu gostas. Damos moedas sempre que podemos aos indigentes que as pedem e, sentimo-nos bem.
Urbe. Morreu a cidade, morreu e vai ressuscitar com pernas e braços, vai agarrar as gentes e pontapear os carros. Vai erguer-se e separar-se dos esgotos, das cavernas, dos abrigos subterrâneos, da rede do metropolitano, vai-se embora e deixa-nos com a porcaria que não víamos, com o lixo que largávamos.
Numa noite em que tínhamos andado a fotografar de tudo e mais alguma coisa e observado as gentes que se aglomeravam para tentarem ser felizes ou esquecer a sua infelicidade através do álcool que nunca tornou ninguém feliz, prosperavam entre nós comentários acerca do quão importante era para as gentes parecer qualquer coisa, melhor ou pior, mas nunca elas próprias. Agarrados, numa esquina sobrepovoada, chamávamos a atenção um do outro para olhares, para os brilhos infelizes que o sorriso camuflava mas não apagava; os movimentos corporais podiam ser expansivos, as parvoíces podiam sair a mil da boca, mas num momento, num instante, lá estava, a centelha da infelicidade, da depressividade tantas vezes ignorante. E tu fotografavas, tentavas de maneira discreta, captar essa luz sincera, esse momento revelador que as pessoas tentam a todo o custo esconder, porque sabem que as outras não têm paciência para tristezas, não querem levar com macambúzios, sisudos, pessoas com problemas, procuram antes, gente alegre, gente de piada pungente e que goste de se divertir daquele modo grotesco, que é ir para um sítio ruidoso para assim não haver necessidade de manter um diálogo.
Já muito cansados e a uma hora tardia, parámos um bocado num miradouro, porque sentimos que ainda não é hora de ir para casa, sentimos que as nossas conversas, os nossos olhares, começam a atingir outro nível de cumplicidade, provavelmente idiotice nossa, mas ali ficámos, endiabrados por paixão e cheios de frio, a ver a cidade em sofrimento psicótico, porque nem dorme nem acorda, está por ali atordoada com as luzes artificiais que lhe baralham os sentidos durante aquelas horas que não passam, apenas se vão liquefazendo e escorrem em direcção às sarjetas para povoarem a escuridão e mórbida fertilidade dos esgotos. Gritos, uivos, rugidos de dor, raiva disfarçada de amor e ausência de contenção, viemos a saber que nesta noite alguém foi assassinado, o que explica os guinchos frenéticos das viaturas de emergência e as fugas de gente mal apessoada com a boca cheia de palavrões e namoradas que se esforçam demasiado para parecerem ter mamas maiores e o rabo mais espetado.
- Queres dançar? – pergunto-te ao ligar o mp3 que permite que se oiça a música baixinho através dos auscultadores.
- Sim.
Respondes e agitas-te languidamente, eu noto o teu cabelo humedecido pela geada que cai de forma sub-reptícia. Dançamos agarrados e a sorrir, eu já de olhos fechados porque me ardem e tu acendes um cigarro para que oiçamos o barulho do papel a queimar, que ambos adoramos.
Venho do trabalho, quase nunca te encontro em casa e gosto. Gosto de estar um bocado a olhar para as tuas coisas, aquece-me a mente. Olho para a loiça que usaste e deixaste desarrumada, para roupa interior espalhada em cima da cama, porque estiveste a escolhe-la quando te levantaste, às 10, às 11, às 16. Adoro ver a casa acabada de usar por ti, sinto a tua intimidade a pairar por ali, o odor do teu perfume, o teu calor, parece que os teus passos, os teus movimentos, deixaram um rastro que ainda se nota pelo corredor, no quarto, na sala, na almofada… desejo-te tanto… Encontro um bilhete que escreveste para mim e colocaste dentro da concha enorme que um dia encontrei numa praia. Gera em mim algo ambíguo. Fico abatido por teres acordado tão tarde e teres ido ter com uns tipos que provavelmente te querem separar de mim, porque o mundo quer separar-me de ti, é sempre assim, mas por outro lado, fico tão contente pela consideração, pelo conteúdo. Como qualquer coisa e da pequena varanda espreito para a rua e sei que me basta esperar, que a felicidade virá ao meu encontro. Já não tenho de procurar nem desejar nada, basta esperar, esperar um pouco... claro que nunca há um dia em que não receie que já não regresses, mas, quando estou mesmo a assustar-me com esse pensamento que apesar de surgir cedo, demora muito a adquirir credibilidade, lá vens tu, de regresso, com a tua franja e vestido castanho, com as tuas pernas sempre tão bem depiladas e graça natural em todos os movimentos conexos ou desconexos que faças.

3 comentários:

Anónimo disse...

:)

ou onanismo.

grande texto. tinha saudades de te ler. essa intimidade entre pessoas, que reproduzes tão bem.

obrigado.

Nada disse...

ora essa, sempre um prazer.

bulletproof disse...

sem dúvida a tua melhor produção.