quarta-feira, novembro 25

Rape Jokes - Adendum

"A crise já passou, podem continuar a dormir" leio num cartaz no início de uma transversal da Calçada da Glória, onde gosto de passar quando caminho, porque lá estão plantadas umas árvores que normalmente perfumam o ar no verão, e, além disso, vivem muitos gatos vadios, naquilo que me parece ser uma casa abandonada. Hoje está a chover, os perfumes agradáveis estão na época de defeso e apenas o amoníaco do cheiro a mijo de gato me irrita levemente as narinas.
À saída do metro paira uma horda de monhés e chineses a vender guarda-chuvas, antecedidos por uma amálgama de gente recolhida na saída da boca. Olham para o céu...
No meio da multidão, ouço o meu nome. É o senhor Zé. Mais uma personagem do Bairro Alto, muito magro, de cara chupada, ex-colega, ex-alcoólico tornado ex-abstémio. Chamam-lhe o Zé das Travessas, porque está sempre nas encruzilhadas do bairro, a tomar conta da vida alheia. Tem uns expedientes estranhos, com a elite das ruas mais mal afamadas. Curiosamente, vive numa rua e não numa travessa, numa casa da câmara, sem luz nem água - A casa da mãe, versão mais baixa e mais velha dele, até na falta de dentes e no ranger dos maxilares. Abandonou a casa aos 72 anos para ir viver o amor unidireccional, na bica, com um homem muito gordo, que se apaixonou pela sua mísera reforma. - " Não pagas nada?", diz ele, atalhando. - "Café", respondo, talvez com um ar enfastiado. Depois de alguma conversa aborrecida, algo incoerente, em que me narra as suas tentativas para engatar uma enfermeira ou auxiliar do cento de terapia ocupacional que frequenta no Hospital de dia, ao que eu respondo, com tacto, para esquecer essa paixoneta, porque perante as evidências o que ele me narra não há um mínimo de reciprocidade ou interesse...Os Pink Floyd tiveram a sua década de ouro nos anos 70, que a linha condutora das letras do Dark Side of the Moon, fala-nos das diferentes formas de nos alienar-mos nesta sociedade, e, como, cada vez mais faz sentido. Trauteio mentalmente a Brain Damage - quando chegar a casa tenho de meter este álbum no MP3, começo finalmente, após quase uma semana, a ter vontade de cagar, que estará a máquina a fazer neste preciso momento...Gera-se um silêncio, em que ficamos os dois lado-a-lado, duas figuras a contra-luz, a olhar para as portas de vidro, para as pessoas que passam e para os padrões que as gotas desenham na superfície embaciada... - " Sabes pá, qualquer dia apareço aí morto " - " E ninguém quer saber, se isso acontecer..." acrescento mentalmente.

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