segunda-feira, abril 28

A descida aos infernos e a redenção

Por motivos de força maior, fui obrigado a usar a carreira da noite da Carris. Nesta carreira de serviço público, às 4:34, a fauna, o odor e o espectáculo visual são, em conjunto, dignos das melhores valas comuns ou massacres preconizada/os pelos rebeldes do Ruanda ou os Khmeres vermelhos de Pol Pot.

A fauna em si parece retirada de um auto da barca do inferno revisitado, com a representação de todas as tribos urbanas e da noite. Uma compacta estação do campo grande em hora de ponta. Todas as personagens partilham apenas um elo em comum - o sarro das noites. Temos os metaleiros, os góticos, os indigentes, os mitras, as gajas do reggaeton, os luso-africanos, as brasileiras, os velhos, os trabalhadores, os luso indianos, os gajos do hip-hop, os gajos do tunning, a gaja com uma dentição a fazer lembrar personagens que nos foram familiares em tempos, os presumíveis toxicodependentes, etc…. Até chegarmos ao condutor (piloto) da Carris. De aparência, parece normal, a não ser a veia de Fangio frustrada. Compreendo. Já deve ser a quarta corrida e, logicamente, o quarto espectáculo de terror que, com mester, conduz.

Temos pessoas a dormir, muitas bêbadas, o telemóvel a berrar kizomba/funaná/batida na traseira do autocarro, as conversas em tom alto e sem sentido, os olhares sem chama de quem necessita fazer um reboot ao sistema. Por esta noite, claramente, Esmegma abandonou estas almas.

A essência que envenena o ar é o binómio hiperidrose/álcool, pincelada, aqui e ali, por uns laivos de halitose. Posso afirmar com confiança estatística que, estes traços conferem tanta profundidade à ofensa nasal, se devem ao gesto involuntário dos movimentos retro-peristálticos que antecedem as golfadas de vómito (este facto torna-se particularmente interessante (p. ex: um estudo mais aprofundado), pois permite-nos explorar o percurso gastronómico do sujeito, na noite em causa).

Perscrutando ao meu redor e já com a atenuante do álcool, aquele autocarro é um erro de casting formidável. Um enorme borrão, alicerçado numa tremenda ironia do destino e do acaso.

A descida aos infernos

Estaria a mentir, se escrevesse que não antecipava alguma bizarria dentro deste surrealismo popular, inerentemente, genuíno. No entanto, jamais cogitei que a estocada viesse do grupo no qual, supostamente, me poderia mais facilmente integrar. Os metaleiros que povoavam o lado direito do meu campo de visão.

Quando entrei no autocarro, reparei logo na interlocução ilógica do supracitado grupo. Pairava entre a piada má e a piada péssima. O futuro agressor era um metaleiro caucasiano da velha guarda. T-shirt de uma banda obscura cujo símbolo era imperceptível, cabelo comprido, sinais evidentes de alopécia no escalpe, barriga proeminente e barba comprida. Destacava-se dos restantes, pois debitava os piores gracejos dentro da amplitude de comicidade medíocre daquele grupo.

Aguardou a sua paragem de saída, e numa postura de clara hostilidade guerrilheira e gratuita, lançou: “SE OS PORCOS TÊM 4 PATAS, DONDE VEM O FIAMBRE DA PERNA EXTRA?”. Riso boçal. Náuseas, disfarçadas de risos amarelentos. Silêncio, só se ouve o zouk pestilento do telemóvel na traseira do autocarro. “FODA-SE, CARALHO, QUE É ISTO!?”, penso, com os olhos marejados e o intestino delgado num nó. “Nota Mental: Eliminar estes últimos 6 segundos da minha vida”. “FODA-SE!” Não consigo…

A Redenção

Edward Lorenz, no início da formulação da teoria do Caos, analisou o efeito borboleta. Este autor, preconiza que o bater de asas de uma borboleta pode influenciar e/ou provocar a ocorrência de catástrofe natural do outro lado do mundo. Depois desta hecatombe, desta tempestade de areia que explodiu nos meus ouvidos e comprometeu as minhas futuras refeições, tinha esperança que o efeito borboleta funcionasse inversamente, ou seja que, por algum mecanismo divino de compensação, pelo menos, algo de inofensivo acontecesse.

Tive o que esperava. A dobrar, a triplicar. O reparo aconteceu, quase, na sequência da anterior ofensa vil e torpe, como se estivessem intimamente ligadas não por uma mera justaposição causal, mas devido a um entrosamento ou afinidade cósmica.

Após a ocorrência do triste episódio, entrou um grupo no autocarro, bastante suis generis. Pareciam vindos directamente da Terra Média, concretamente da terra negra de Mordor. Sem dúvida, Orcs que habitavam os recônditos das catacumbas da fortaleza de Barad-dûr suburbana. Este grupo era composto por 5 espécimes, sendo que dentro do grupo estavam formados 2 casais. O quinto elemento era uma mulher só de género, porque a sua face era indecifrável e indescritível, tinha pouca dentição e a que tinha era de um breu infernal. O hálito era viperino, pestilento e diabólico. O corpo era menos imperceptível, mais adequado com o seu género, embora também tivesse as suas limitações. Tinha por volta dos 36 anos de idade, mas parecia dever anos ao sistema nacional de saúde.

Esta senhora, mal entrou, detectou um indivíduo crossover (tribo reggaeton/tunning), mangas cavas, crista e mullet, sentado exactamente na minha frente. Ela sentou-se, insistindo tomar o lugar da janela, ao que o homem anui favoravelmente, resignando-se à coxia. Mal fez o gesto para passar pelo rapaz, alimenta as suas garras com as nádegas deste. Este, embora, indignado com a situação resolve ignorar os avanços da mulher-orc. Passados 2 minutos, com as paredes vaginais húmidas, a mulher torna a deleitar-se com o apalpão de glúteo do incrédulo rapaz. Como se não bastasse, tenta-lhe roubar um beijo com os seus lábios de zombie. O alvo de tamanha ofensiva indigna-se e foge para o meio do autocarro, logo perseguido pela hiena. Esta cerca-o, alcançando o seu rabo mais uma vez, ao mesmo tempo que balbucia “parece que as cervejas me subiram à cabeça”. Apesar de a sua vida estar a andar na direcção inversa, de repente iluminou-se uma réstia de esperança no seu rosto. As redondezas pareciam-lhe familiares, significava que estaria a chegar a sua paragem, a distância que o separava do automático esquecimento. Com um grande jogo de cintura, livra-se da orc, não sem antes sofrer as consequências da sua ousadia. Visivelmente com o ego em baixo, resigna-se e sente-se violado, dirige-se para a porta e desce apressado o degrau que lhe promete a liberdade. Subitamente, sente a vida novamente a fluir. Observa as portas que se fecham atrás de si e num último momento segura-as e grita para dentro do autocarro, num tom de voz bronco: “FODA-SE! TEM IDADE PARA SER MINHA MÃE E ANDA-ME AQUI A APALPAR O CU”. A sua honra está reparada. Silêncio. De repente uma gargalhada geral, cúmplice e subversiva. Escusado será dizer que a senhora desapareceu, ainda que o seu espectro aziago pairasse naquele autocarro por mais algumas paragens. Eu tive a minha redenção, a azia passou e o universo restabeleceu a sua ordem.

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