domingo, dezembro 21

Condicionamento?

Para a indiferença de um velho e pesado eléctrico que há anos percorre os carris impostos à terra e ao basalto, um grupo de miúdos naturalmente travesso, resultante de uma educação peculiar e de um meio particular onde a domesticação é apenas parcial e a idiotice e a consanguinidade muito frequentes, vão, ao mesmo tempo que troçam uns dos outros, escarrando para as pessoas que transitam na rua e civilizadamente se desviam para que o eléctrico possa passar e levar os seus ocupantes a tempo e horas para o seu destino que tantas vezes nem existe. Têm uma penugem que está para a barba como a mórula está para o embrião, um sebo natural que lhes atribui uma tez escura, magros, claro que são magros, alimentam-se mal durante os intervalos das discussões dos pais envoltos em imbróglios na Mouraria, Alfama, num qualquer desses bairros onde existem os verdadeiros e apenas parcialmente domesticados lisboetas; tomam tragédias desconexas no lugar do pequeno-almoço, guerras sobre parentescos dos vizinhos e primos em França ao almoço e ao jantar, para além da penicilina, grandes doses de contenciosas heranças e partilhas intrujadas. Claro que eu agora podia dizer que me sentia açambarcado por toda esta áurea citadina, pela melancólica química dos espaços exíguos por onde a composição passa, pelos olhares argutos e natural mau aspecto dos que vão à pendura, pelas conversas sem sentido das velhotas assombradas pelo espectro do senhor Senil, pela subtil e paciente labuta dos carteiristas que eu não vejo, podia escrever sobre as Tágides, porque o raio da palavra soa mesmo bem. Podia escrever qualquer coisa acerca de Fernando Pessoa, que é sempre aceitável nestas situações e na pior das hipóteses, é uma boa deixa de engate para uma daquelas tipas pretensiosas que se fartaram das discotecas e da música quadrada e agora procuram cultura e profundidade, mas, escrevo apenas acerca do júbilo da chusma fedorenta e feromónica; uma efusão imparável faz-se sentir no eléctrico quando um deles – um dos mais calados por sinal – acerta com uma enorme escarradela na testa desprotegida de um tipo careca e de meia-idade – talvez não fosse um dos mais calados e o silêncio fosse apenas um sucedâneo da colheita e respectivo armazenamento do seu belicoso composto de suco gástrico com saliva – o homem fica atónito e passados uns dois segundos, ao ver os risos e os dedos a apontar, apercebe-se do sucedido, encolerizado, ameaça de forma pouco articulada, o eléctrico pára num semáforo uns metros acima: «ai ai, o careca vem ai, ele vem ai» mas claro que não foi. Continuo a observar aquele desagradável grupo de recém púberes sem qualquer expectativa, eles continuam a apontar as suas escarras quase indiscriminadamente e desmancham-se em gargalhadas quando acertam, quando falham, conjecturam de forma pouco elaborada e insípida os motivos do falhanço «não vês que o vento está para o outro lado»; «para ai é a descer». Não sei se fico fascinado ou atordoado com a sua falta de moral, escarram para crianças que vão de mão dada com a mãe, para carrinhos de bebé, para senhoras grávidas, velhotas amparadas por uma bengala, tipos com ar de quem vai para o cadafalso, gajas podres de boas com aqueles óculos escuros grandes que tapam a cara quase toda – admito que no caso das últimas, enfim, não é preciso dizer mais nada. A dada altura, um deles depois de acertar num alvo desejado, agarra-se a um pedaço de madeira e espeta-se uma lasca na sua mão – será que achou que foi punição? O que sei é que esse não escarrou mais. Animais, condicionamento clássico?

1 comentário:

Anónimo disse...

LOL.
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