terça-feira, dezembro 2

A noite (in)feliz

«Entrei numa casa trivial, casa de raparigas solteiras que haviam organizado as coisas, a proxémica, os víveres, a luz, de forma a darem uma aparentemente modesta mas que na realidade era uma pretensiosa festa; para mim, era mais que uma festa, era um baile de debute intelectual. Abriste-me a porta, formosa, de seios petulantes e com um penteado cheio de estilo que ficava bem com o teu embotado e ao mesmo tempo, perverso olhar – vi-me em ti. Sigo-te enquanto cirandas pela casa e me apresentas ao teu rabo proporcional e às pessoas que por lá estão com o seu à vontade e ar pedante; vou recusando as ofertas de alimento mas até me apetece comer, recuso nem sei bem porque e invento rocambolescas justificações para a recusa que só podem mesmo parecer rudes ou no mínimo, idiotas; talvez eu não queira comer porque não confio nas minhas maneiras no trato com os alimentos e talheres ,porque desconfio que pareço uma besta a deglutir, um abrutalhado devorador de carne, coisa que ali não existe, ali ninguém come carne, ali estão todos num nível moral acima do meu.

Parece que toda a gente se conhece e eu, não conheço ninguém. Ela, a que me abriu a porta, olha-me de soslaio e parece abstrair-se da conversa e dos outros, embora, quando a referem, sorria com pelo menos metade da boca. As conversas à lareira mal ateada que solta grandes quantidades de fumo directamente para sala e ao som de dvds musicais, correm-me bem, fala-se de economia, sociologia, política, merdas afins, e como que por milagre ou por uma estranha verve que calhou surgir naquele dia, tudo o que eu digo parece acertado, até consigo introduzir estrangeirismos de forma assertiva, algo inédito até então, tudo aquilo que os outros referem é por mim conhecido, faço acrescentos, apartes, referências caleidoscópicas, ouvem-me, invejam-me, tentam refutar-me delicadamente mas eu ainda mais delicadamente, faço-lhes ver a minha razão e acabam por aceitá-la, consumi-la com um delicado travo a desagrado. Ela, de vestido cinzento, foi ficando mais silenciosa e também voluptuosa ao longo da noite. Chega a hora das despedidas: tal como os outros fazem, revelo a intenção de partir; despeço-me de um, de outro, dou dois beijos numa qualquer, ela fixa-me, olha-me com um olhar triste, de animalzinho abandonado, de criança órfã que vai contorcendo os músculos da face para arranjar entre as rugas caducas geradas pela vida, mais uma fresta onde guardar nova desilusão. Será que quer que eu fique? Vou retardando a minha saída o mais que posso, ela nada me diz, até que: Não recebeste uma mensagem no telemóvel? Consulto-o e tenho duas, a primeira pergunta se já vou, a segunda, num clamor de desespero ou confiança, pede para eu ficar. Fiquei…»

1 comentário:

rameladoiro disse...

" Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cüa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exprimentas!"

L.V.C