domingo, fevereiro 1

Convite

Venham a minha casa passar o tempo que agora se mostra tão amarelo e gangrenado; tenho algumas cadeiras bambas; janelas que abrem ao contrário e dão vista para o imenso e soturno cemitério de pinheiros e ribeiros a que chamamos subúrbio.
Falemos directamente, deixemos sair as inquietações dissimuladas de gracejos, entrar a opulência de uma morte anunciada que ressalta no alcatrão húmido e lamacento. Encostemos nossas peles oleosas onde o viço morreu sufocado, à janela e observemos através das gotas de chuva no vidro (urina da biodegradação), as luzes fátuas dos autocarros que trepidam no decrépito conjunto de ruas esburacadas e desniveladas que traçam o nosso rumo, o nosso desimportante rumo que não faz diferença alguma. Oiçamos os graves que outrora foram agudos, gritos da mãe para seu irrequieto rebento que nunca se ouve, que nunca se vê - foda-se morreu, morreu!!!; o borbulhar da canalização entupida por resilientes dejectos que se prostram e nos mostram que a porcaria tende sempre a vir ao de cima; os passos endiabrados que trouxeram do café lá em baixo até à minha porta, alguém, um vizinho que por mais vezes que comigo se cruze, será um estranho, um verdadeiro idiota que nem a televisão consegue dobrar. Aquela, bela, condescende, indulgente, indulgente, meretriz, meretriz, me-re-triz, meretrizzzzzzzzzzzzz, presta-lhe atenção, presta-lhe atenção, atenção, atenção!!!
Por fim, quando estivermos altamente alterados por chá com um qualquer toque de pensal e baraticida, descendamos aos esgotos, onde é sempre funeral, onde o féretro nunca termina a sua caminhada, volta e volta, torna e torna - as nossas pequenas mortes, os nossos pequenos assassinatos, os cagalhões, vejamo-los infinitos, a morrer, a perecer, partes de nós, processados por nós, abortos espontâneos, dores nossas, amores, sentimentos, frustrações; andemos nos esgotos, saltemos para não pisar os cadáveres, tapemos o nariz não para evitar o fedor, mas sim aquele odor a pinheiro, aquela frescura matutina que permitia ver as lebres céleres a pisar a erva e a caruma, sem um rumo que não fosse aquele que não tiveram de escolher. Cobertos de opróbrio, descobrimos que o ascetismo morreu também, numa feze qualquer, o bom-senso não é também, mais que aquela mixórdia parasitada por lombrigas. Tudo se desfaz e ouvi-mo-lo a desfazer-se, tal como ouvimos o ruído da água a correr, aqui, nos esgotos por baixo da minha casa, ruído que soa tão bem, é tão belo, como o da água a correr numa bela e despoluída nascente.

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