domingo, fevereiro 22

Uma noite no Porto

É um vazio que não entendo, um passeio que não chega a acontecer, é a meia-noite daquilo que não sinto. Sigo viciado em momentos que me fazem esquecer a minha existência vulgar, monótona, da mesma intensidade que a actividade sísmica da lua; viciado em momentos que me tornam as palavras leves e os olhares pesados de paixão. Viciado mas imóvel, viciado mas reduzido à incapacidade, manietado pelo conformismo, pelo ar de perdido, pelo adeus à beleza. Foi-se… e cada vez de mais longe, acena-me de forma trocista, como que a seduzir-me, Lolita metafísica, castração química.

O sentimento a bruxulear dentro de mim, a vida a mexer-se, a agitar-se, faz-me cócegas e eu gosto, é bom, é desconfortável e faz com que me sinta mais novo apesar do fardo do encanto. Aqui é onde as coisas acontecem ao ritmo da passada lenta e compassada, onde o vento sopra e depois faz-se um grande silêncio apenas quebrado por uma palavra acertada; silêncio novamente, olhos nos olhos durante cinco segundos, um ar muito preocupado, voltamos à passada.

A realidade é uma guerra onde as últimas batalhas têm sido ganhas pelo vazio, por esse vácuo transparente que fica dentro duma redoma branca, por esse fio de fumo que se perde num oceano; a inspiração vai perdendo, perdendo… o ponto de não retorno é já ali – um dia torno-me vazio e vulgar, sem nada de inopinado, sem o desleixo da inspiração, a desordem do encanto, sem o fascínio da bizarria, das massas perdidas alojadas à beira de uma sarjeta entupida, sem noite nem dia, fico caído a um canto de minha casa ao invés de procurar, deitado num sofá à espera que os dias, iguais a todos os dias, avancem, avancem, como se algo pudesse acontecer ou deixar de acontecer, coisa revolucionária suceder. Um dia não me levanto e a pia será a minha melhor companheira, um dia torno-me irreconhecível para mim mesmo e deixo de me respeitar. Não me lembro do último olhar que cruzei…

As folhas perenes, fartas de ver as caducas a perecer, agitam-se e assistem a esta noite fria de constipação iminente; sinto o odor do teu tabaco que naquele fumo que desenha no ar, traz também um pouco do teu cheiro, pedaços microscópicos da tua pele, células tuas com vestígios dos sentimentos que foste perdendo, tosses com força, uma, duas vezes e o cabelo negro e encaracolado vai-te para as vistas. Banco de jardim isolado com fetos secos a brotarem para cima de nós, ervas daninhas cresceram onde agora temos os pés, encolhemo-nos com frio, o frio que permite justificar os titubeares da voz e olhamos para o céu da cor da cinza do teu cigarro, coberto de nuvens altas, longínquas e indiferentes a tudo, indiferentes a uma noite morta para além deste banco onde qualquer coisa espera ainda por morrer, perto do charco onde toda a fauna se silenciou para presenciar mais um momento de infértil interesse, de sentimentos contidos que geram uma impotente entropia interior.

Oiço um zumbido que está em todo o lado, ocupa todos os espaços físicos e temporais, ocupa tanto que por vezes penso se não estará dentro da minha cabeça, mas não estão todos os sons dentro da nossa cabeça? vai e vem, para aqui, para ali, às vezes parece que se afasta e oiço-o pior, mas regressa rapidamente por um túnel e mais um ciclo completo, nunca o deixo de ouvir – é o grito da urbe, grito medíocre, grito constante e regular, sem grandes oscilações ou vibrações, um grito que vive por viver, vive indiferente ao ter de morrer.

- Quem és tu, porque te sentas à minha beira?

Saem-me com dureza, as palavras. Sai-me tudo cá para fora mas nada mais verbalizo e nem um dedo me atrevo a mexer… a tua barriga, tão perto de mim.

- Sabes bem quem eu sou. – respondes e depois tosses, tosses tanto que eu fixo-te os pés para que não te sintas constrangida.

- Tens frio? – indago, como que para me redimir de qualquer coisa, para me redimir do vazio que cresce ainda mais, para me redimir da vontade de partir a correr e parar apenas desmaiado no chão, morto de fadiga, acho uma boa maneira de morrer, completamente estafado, sem poder mais, deve ser um alívio, uma paz bem-vinda e desejada.

- Não, já estou habituada.

- Gostas de mim?

- Por vinte euros gosto de toda a gente.

E eu gosto tanto do teu sotaque…

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