terça-feira, fevereiro 3

Memória Fátua

«...és igual a todos os outros, a única diferença é que conheces mais palavras.» Não consigo lembrar-me de quem me disse isto, esforço-me, mas é inútil.
Passo de carro pelas ruas do sítio onde recentemente deixei de viver; junto à paragem dos TST, vejo o Edgar, não o reconheço de imediato porque já é um homem com trinta e alguns e nas minhas memórias, ele tem sempre vinte e poucos, mas sim, é o Edgar que tanto se gabava do passe social, o Edgar que seguiu a carreira do pai e se tornou carteiro, então, delirou porque os CTT lhe pagavam o passe. Continua com o seu sorriso pateta de quem à nascença fez uma razia ao atraso mental e no final da curva deu de caras como o ensino público regular. Recordo-me dele e do seu rol de alcunhas quando eu tinha uns treze anos: muito moreno e seboso, com uma propensão para o disparate, por mais punido que fosse, por mais vezes que o espancassem no café do Manel, que o deitassem no contentor do lixo ao pé da escola em construção, não conseguia ficar calado - era a paralisia cerebral ou a idiotice iletrada... Faziam-lhe tudo, humilhavam-no numa reverberação qualquer de uma virgindade não perdida, tipos mais novos que ele mas mais velhos que eu. Recordo-me de ouvir a minha mãe dizer mal da mãe dele, que delirava por entre as bancas dos feirantes, numa qualquer manhã, por entre raides de grandeza e ideias persecutórias transmitidas com grunhidos agudos e interjeições analfabetas.
Às vezes eu defendia-te, porque me entristecia mesmo o que te faziam, ao ponto de uma lágrima começar a escorrer-me discretamente pela minha vista das lágrimas. Tinha uma moralidade forte, um sentido de justiça que depois se foi extraviando com o evoluir, com os conhecimentos e livros que li, com os jogos de xadrez, com a alimentação e uma ou outra ejaculação. Enfrentava aqueles tipos irritantes que troçavam de ti e te usavam para alimentar uma histeria colectiva que camuflava as suas frustrações muito pessoais. Era bem mais pequeno e ao início não me ligavam, não ligavam ao fedelho de ombros exíguos e com madeixas de cabelo sempre a caírem para os olhos, mas eu era tão determinado, os meus punhos falaram por mim e o nariz quebrou-se-me algumas vezes.
Acho que o meu irmão nunca me perdoou tê-lo defendido, via-o a olhar-me completamente irado, enquanto eles troçavam de mim e da minha indignação, enquanto gozavam comigo por o meu pai ser camionista e eu vestir-me com coisas gastas e feias... eles sentiam tudo isso, então aproveitavam para gozar com o meu irmão para que ele ainda mais me odiasse, chegavam ao cúmulo de o "adoptar" no seu grupo, desde que ele comigo também gozasse. Apanhavam o balanço e troçavam por eu ter confessado a minha paixão a uma rapariga que ali passava por volta das 18horas, vinda da escola; estavam todos, eles mais velhos, ali juntos à espera da sua passagem, dos seus cabelos pretos, do seu sorriso de embriagada. Ela vinha quase sempre acompanhada de dois ou três tipos de ar e fama feroz, então, raramente troçavam comigo durante a sua passagem, mas lá de vez em quando... Gozavam, riam porque eu não tinha hipótese... todos a queriam... mas quantos sentiam o aperto no estômago quando ela passava, quantos tremiam e se sentiam vivos ao vê-la naqueles jeans apertados com os joelhos quase a baterem um no outro enquanto se ia aproximando daquela esquina e depois afastando?
E se ela me tivesse dito que sim, se me tivesse levado para a sua espiral de auto-destruição, saberia eu as tais palavras?
Não me lembro mesmo de quem me disse aquilo...

2 comentários:

rameladoiro disse...

bom texto bom texto. thumbs up.

Anónimo disse...

"Ouves-me sem me entender.
Sorris sem ser porque falo.
É assim muita mulher.
Mas nem por isso me calo."

F.P.