sexta-feira, fevereiro 13

A RECTA

Negligenciei-te...
Há sempre algo que me inspira, um último e seguro recurso, porto de abrigo para a minha débil e suplicante por eutanásia, criatividade; independentemente da tipologia do dia, da cor da sua face e espessura da sua linfa, do volume da precipitação, do número de horas de sol ou intensidade das mesmas, ilumina-me... Inspira-me mas eu fico contrafeito, nauseado, é uma inspiração doentia, perniciosa, que se propaga em mim e já me conhece melhor que qualquer outra pessoa ou cousa, incluindo eu próprio - é o meu delicioso tumor, a negritude que embeleza as minhas palavras, as tardes no IPO, o pacto com o diabo que é apenas um tipo como os outros, burocrático e que faz BTT no fim-de-semana.
Já só te tenho a ti... aglomerado de quilómetros, asfalto esburacado por tudo e todos, trespassado por aquele peso que quando eras nova, gostavas de sentir em cima de ti, porque ninguém gosta de tísicos ou de platonismos.
Venho do trabalho e o trânsito acumula-se, pára e arranca, está escuro e, ali, é ao contrário, porque ali a actividade ilícita não sobrevive ao cair da noite, não supera a ausência daquele aterrador brilho do céu -assusta-me tanto que o tenhamos trocado por Deus; os fachos ejaculados pelas cabeças dos carros que amiúde alumiam a tua periferia, não dão a segurança suficiente, a visibilidade ao teu histrionismo -antes fossem, histriónicas... Olho para as bermas que andam lentamente, ao ritmo decidido pela fila e pelo meu pé hediondo no acelerador, uma luz parda parece acumular-se centímetros acima de ti, uma espécie de penumbra luminosa, um nevoeiro de luz, um nevoeiro onde se esconde cada gota de esperma perdida, que agora, fosforescente, é um pirilampo; vejo a vegetação rasa que envolta pelo mefítico ar que ali paira em baixo porque tem vergonha de ascender, pequenos abortos, pequenos rebentos indesejados que ali ficaram, na aridez dos sentimentos, no viço da perversão, ali a noite é dia e o dia é noite, ali é tudo às claras e as porradas quando muito são vespertinas.
Há quem tenha a lua, dizem-se seres lunares, falam com o satélite e pregam-lhe balelas e histórias de amores mal-contados, eu prego-te a ti, minha recta, que brilhas, resplandeces aqui dentro, milhões de pirilampos, urzes que ninguém queria e te enfeitam daquela forma tão ridícula que nos faz rir quando passamos à tua beira... Como poderia ter eu ido para Lisboa e deixar-te, musa, tágide que vieste pelo mar da palha, ninfa dos meus olhos que nada sentes por mim...

4 comentários:

Homem da Fruta disse...

Eu gosto da Marginal. É uma estrada bonita. Não pelo facto de ser à beira-rio ou beira-mar, pois até podia ter um muro de betão desse lado, mas porque é sinuosa, desafiante e suave.

Nada disse...

é uma boa estrada, que exige concentração e mão firme no volante, mas ao mesmo tempo não pede reduções, o que a torna suave e boa de se fazer... é bem visto.

Nada disse...

Devíamos enviar currículos para o rotações e para a auto-hoje.

Homem da Fruta disse...

Gostava bastante de experimentar carros, por acaso. O Rotações devia voltar. Tinha aquele apresentador com uma voz radiofónica e que brincava e gesticulava constantemente com uma caneta. Bons tempos... Penso que era nas manhãs de Sábado que dava. Antes do Telejornal.