quarta-feira, outubro 29

Aquilo

Eu acho que é de estar um bocado só… Entortado por pensares que me apresentam a mim mesmo como um fruto da mais profunda desilusão, do lento pesar do insucesso. Na minha vida, de tempos a tempos, sinto-me mais só que o normal e, quando isso acontece, quando essa espécie de carência me enfraquece até ao limiar da vulgaridade, tendo a procurar pessoas, caras estranhas que me encantam por assim serem, vê-las, mesmo que com elas palavra não troque ou olhar partilhe. Percorro as ruas movimentadas onde se escuta o peculiar trote da misteriosa essência humana, as desertas vigiadas por alguém que deixa a luz acesa até muito tarde, perscruto os passos apressados, o silêncio dos gatos, o zunir eléctrico de qualquer avaria ou o vento a embater em objectos degradados que jazem no subconsciente da urbe. Nestas alturas de vulgar solidão, de banal necessidade, evito ir para casa… Podem já todos ter recolhido, eu, necessito continuar a adiar o retorno para o isolamento total: cego a estímulos, que não me deixa alternativa àquela meditação que surge sem que eu a solicite e que me auditoria as deliberações pouco convictas e os actos recentes ou de sempre. … é um aperto no estômago, leve picada que me quer manter ao frio, uma raivazinha, a discreta gota de urina que fica no tampo da sanita… se for para casa, perco a estúpida esperança de falar, contigo, com ele, com uma estranha qualquer com ideias megalómanas cheias de grandiloquência. Ao estar pela rua, existem possibilidades, existe aquele grito agudo, que se ouve ao fundo do túnel, assombroso, encantador. Sei-o, sinto-o, numa rua da cidade, cirandando, desesperando, vomitando ou esperando por mim, está algo que eu devo procurar… Às vezes desisto, entro no carro e meto-me a caminho de casa, mas paro nas estações de serviço e olho para as gentes a comprar tabaco, com roupa de quem veio da discoteca; paro à beira da marginal para olhar o mar revolto e o incognoscível areal; detenho-me debaixo do céu para olhar as estrelas e com sorte, umas gotas de chuva; fico no meio da serra, fixando o olhar nos brilhantes olhos de uma raposa. Pode acontecer qualquer coisa em qualquer um desses sítios - eu desejo tanto que assim seja - a maior improbabilidade de todas e, quando acordar no dia seguinte ou até, no dia depois desse, poderei deixar de me sentir incompleto e sorrir com aquele ar de satisfação e realização, mesmo sabendo da efemeridade da sensação…

1 comentário:

rameladoiro disse...

há coisas que nós presenciamos que não sabemos que são mesmo importantes e elas lá ficam, a medrar, a alimentar os nossos dias de alguma beleza e bondade. hm hmmmmmmmm.