sexta-feira, outubro 10

MD

Amigos? Claro que tenho amigos! Amigos, produtos da mais cerrada miséria humana, amigos que se revelam amiúde, por entre esquinas e paredes envelhecidas da cidade decrépita que parece respirar com muita dificuldade, num arfar doloroso que nas entrelinhas clama pelo suicídio. Os amigos não estão lá sempre, por vezes fundem-se na celeuma urbana e são preciso mil centelhas de qualquer coisa para que eles apareçam. Um cão cheio do sarro da noite, pode ser meu amigo, tal como o alcoólico que aperta com a sua garganta toda aquela depressão que com a bebida se tornou miudinha e quase incognoscível. Pergunta-me se é deprimente. Que lhe digo eu, sob este véu escuro e cheio de um húmus infértil, que lhe respondo eu do alto deste meu ferro-velho mental, deste esgoto idiossincrático que só é capaz de debitar o horrendo, o ardil do veneno da madrugada? Como se eu fosse a água da sua azenha, procura mais certezas, confirmações, para juntar às nenhumas que já tem. Quer saber se é o cão ou o bêbado, mas, quer saber muito mais, quer saber se a sua vida tem fundamento, quer saber se o amor que não sente, a paixão que não lhe toca, se tudo isso são coisas normais e eu, eu sinto-me mal, sinto-me um bruxo cego a coisas de adivinhos, não sei que lhe diga, não sei se ele vai bem, se está mal e se se desgraça a cada lufada de ar que com o seu corpo torpe e obeso absorve. Faz que não me ouves, faz isso mesmo, se me ouvires segues para caminhos cheios de viço aparente que sob a luz certa, são apenas sinal de uma ímpia devastação onde o opróbrio cobre de lés a lés. Sei do mal-estar que te vai corroendo as entranhas regaladas com toda a comida boa que consomes sem dó nem piedade de ti mesmo, sei, sim… sei que faças o que fizeres, por menor a dignidade que esbanjes por aí, dentro da tua economia de filantropismo e magnificência, por menos asceta e mais meliante que sejas, lá estarei para te escutar, para me irritar com os teus comportamentos mesquinhos e observações inúteis que me fazem suspirar e desejar ter qualquer objecto cortante com que te desmembrar, mas, lá estarei, para te tolerar, ser tolerado, aconteça o que acontecer.

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